sábado, 5 de janeiro de 2013

Bendito atraso!



A nossa história começa na antessala de um consultório de ginecologia e obstetrícia.
Vocês pensarão: “ Que lugar estranho para ambientar uma história...”
Eu também concordo, mas o nosso conto decidiu ser iniciado lá. Parece impossível, mas quando começamos a escrever, tanto os personagens como a ambientação vão tomando forma e contornos próprios.
Bom, prosseguindo, lá estava ela: Trinta e muitos anos, observando o esmalte preto das unhas- “ Tenho que ir à manicure...”, pensava consigo enquanto se consolava porque a depilação estava em dia.
“Cecília.”
-“Sim, sou eu.”
Levantou-se cuidadosamente, apresentando o documento de identidade e a carteirinha do plano de saúde.
A secretária – uma senhora idosa e com um aspecto bastante severo- analisou a foto do documento como um perito criminal.
Cá entre nós, estava tenebrosa e irreconhecível, mas atire a primeira pedra quem estiver “bonitinho” em foto assim!
A secretária seguiu com a burocracia e Cecília sentou-se novamente, com uma sensação de culpada por alguma coisa.
Como a maioria dos médicos, a dela estava solenemente atrasada. Não que eu seja contra os atrasos, até porque não sou a mais pontual. Mas acho um horror quando NÓS nos atrasamos e ELES nos põem no último horário, com um TALVEZ pairando sobre este fato.
Cecília estava tensa e o atraso não ajudava em nada. Era um exame de rotina, mas nunca se sabe o que a rotina achará. Parece vestibular e jamais sabemos se estaremos entre os aprovados...
Costumo dizer aos médicos que a pior nudez é a que se faz aos médicos: pode-se estar vestido, mas eles nos perguntam tudo, até sobre os ancestrais. Pesam, medem, enfiam coisas nos nossos orifícios (pode ser o ouvido), mas a gente se sente invadido, como um E.T capturado.
E o pior disso tudo é que eu nunca vou enfiar nada nos buracos deles, não é?! Cadê a reciprocidade?!
Passaram-se alguns minutos e a porta de vidro se abriu. Uma jovem ruiva, grávida, entrou acompanhada de ... Ricardo!
Cecília desviou o olhar, fingindo procurar algo na bolsa, naquele desespero e aflição que só alguém que reencontra um grande amor consegue dimensionar.
O casal sentou-se e, logo em seguida, a secretária chamou a ruiva.
Cecília quase teve um colapso nervoso. Teve o ímpeto de sacudir a pequena velhinha até despencar-lhe todos os ossinhos. Antes que o “velhicídio” ocorresse, a ex futura vítima olhou para Cecília- parecia adivinhar as intenções dela!- e sorriu. Um sorriso amistoso, cheio de carinho.
A moça quase teve um infarto. A  avó de Ramsés sabia sorrir! E um doce sorriso!
-Ah... Só poderia ser ironia porque a ruiva, linda, jovem foi PROTEGIDA por ela, aquela, aquela...Cleópatra vadia e insensível! Peraí, pensou Cecília, Cleópatra tinha cabelos negros...
Enfim, a velhinha foi até a moça e, maviosamente -ui, cruzes, acho que fui contaminada por esta coisa toda antiga!- tocou a mão de Cecília, dizendo: “Eu percebi o seu incômodo porque a mocinha foi atendida antes de você, mas é gestação de risco. Você entende, com certeza...”
Eu odeio, queridos leitores, quem esfaqueia sorrindo. Sabem aquelas pessoas que dizem coisas horríveis, mas num tom de voz baixo acompanhado de um sorriso doce?! Eu, se pudesse e fosse legal, batia com rabo de tatu em todas elas.
Prosseguindo, a Cecília foi atingida por este veneno da avó do faraó- Raminho, para os íntimos.
Viu-se ali, sentada no mesmo ambiente que Ricardo, sem ter o que fazer além de disfarçar a ansiedade crescente.
Ele a olhou profundamente. Aqueles incríveis olhos cor de Avelã, com longos cílios negros que aqueceriam a alma de qualquer mulher.
Ela sorriu, mais tensa do que antes. Pensava que seria dali para o psiquiatra.
Já não pensava mais no exame. “ Dane-se o exame... Odeio esta velhinha... Ruivas são vulgares”.
Estava no esquema nada a ver com coisa alguma.
Suava, teve taquicardia, correu para o banheiro. Tentou lavar o rosto- as mãos estavam trêmulas- quando se olhou no espelho. “ Cecília. Você é gata, linda, maravilhosa e...MAGRA!”, caindo, em seguida no choro, porque se lembrou do bombom que havia comido e das unhas que não fizera a tempo. E logo hoje... Ricardo...”
Toc, toc, toc- Era a secretária- “ A senhora está bem?”
Cecília teve vontade de dizer que queria vomitar o bombom, fazer as unhas e matar a ruiva mas, tirando isso, tudo bem. Respondeu somente que sim.
Saiu do toilette recomposta. Sentou-se.
- “ Olá, Ricardo. Tudo bem?”, cumprimentando-o com dois beijinhos no rosto.
- “ Tudo ótimo! Nossa! Você está tão...DIFERENTE!
- “ D-I-F-E-R-E-N-T-E como???”
Pronto, lá se foi a mulher blindada e seja bem vindo o desespero.
-“ Sei lá... Acho que você deu uma encorpada...”
“Ele me chamou de gorda? Vai ver só...”
- “ O tempo passou para nós dois. Quando nos conhecemos você também não tinha esses cabelos brancos que, aliás, estão em motim!”, soltando uma risadinha de vingança.
E Ricardo, sem qualquer abalo, olhou para a alma da mulher e, após alguns segundos,
-“ Casou?”
Ela pensou em mentir. Afinal, jamais voltariam a se ver e sairia por cima. Diria que o marido era lindo, carinhoso, bem sucedido, que tinham dois filhos maravilhosos... Ah! E a espera de um terceiro filho, numa gestação SAUDÁVEL!- Ponto para o time da Cecília.
Mas não. Esse não era o seu eu. Respondeu com um lacônico “Não”.
Estava coberta de vergonha. Quando Ricardo entrou naquela sala descobriu que ainda o amava e o havia esperado desde o término, há uns dez anos.
Desejava as mãos nos cabelos, os pelos do seu peito, o perfume do pescoço... E tudo isso agora era da Cleópatra ruiva ( aquele tom era falso! Hum!)
- “ E você, como está com a gravidez dela?”, tentando ser neutra.
- “ Bem! Estamos todos muito felizes e a família comemora muito a chegada deste bebê!”
- “ Ai, que maravilha”- Leia-se: MORTE À VADIA!
Cecília levantou-se determinada. Chegou até a secretária- a avó de Ramsés- e decisivamente disse: Não posso mais aguardar. Marque-me para um outro dia.
Ricardo apressou-se: “ Olha, Cecília. Sei que está ocupada e que ela foi atendida fora do horário. Mas a gravidez é de risco e hoje ela não acordou bem. Preferi trazê-la de imediato e gostaria de não prejudicar você com isso. Enquanto aguardamos, conversamos mais. Por favor...”
“ Boa, esta. Fico aliviando a pressão dele enquanto aumento a minha. Ricardo é um perverso”, pensava enquanto balbuciava um “Tá bem...”
- “ Mas, então. Você está linda!”
- “ Você quer dizer GORDA”
- “ Eu???”
-“ Ué? ENCORPADA significa o quê?”
A gargalhada que o Ricardo soltou foi tão alta que a avó de Ramsés acordou do cochilo com aquele olhar severo.
- “ Não! Eu quis dizer que você está mais mulher, em unidade. Sabe, completa. Por isso  perguntei se casou.”
- “Ih... Vamos mal. Em que século você vive? Uma mulher pode ser feliz solteira. Você sabia que as solteiras transam mais que as casadas? É estatístico!”
A velhinha quase teve um troço. Ela era da época que não se falavam “essas coisas” assim, em qualquer lugar. E eram “relações sexuais” e não “transar”. Na época do Ramsés transava-se onde? Enfim...
- “ Claro, Cecília. Eu até concordo” e com isso, a porta do consultório abriu-se e saiu a ruiva, sorridente, com as mãos sobre a enorme barriga.  Agarrou o pescoço de Ricardo avisando em alto e bom tom: “Tudo ótimo com o bebê!!”
O homem desmanchou-se em afagos, lágrimas, beijou a barriga da ruiva. Era solar!
Cecília sentiu-se no subsolo do amor. Sorriu amarelo e, quando ia entrar no consultório arrastando atrás de si os pedaços da sua infelicidade, Ricardo foi até ela: “ Espera. Levamos dez anos. Quero todos os seus contatos.”
Que sorriso de entrega! Lindo!
- “ Para o quê?”
E a ruiva interrompeu a resposta: “ Quem é, Rico?”
 - “ A Cecília. Que absurdo! Eu nem as apresentei. Mas era muita emoção para um único dia. Esta é a Carmem, minha irmã caçula. Lembra-se dela?!”
E Cecília recordou-se de uma ruivinha, sardenta, de uns oito anos, sempre rondando o casal e repetindo: “ Quero ser dama! Sei que já não sou pequena, mas quero ser! Ninguém casou antes nessa família...”
Com um alívio na alma, cumprimentou a Carmem e acarinhou a barriga do sobrinho- ufa!- do seu amor.
- “ E você, Ricardo, tem quantos?”
- “ Eu? Nenhum e como você jamais me casei”, sustentando um sorriso de contagiar a secretária.
Carmem saiu de fininho e, com um aceno, levou consigo a avó do Faraó, que disse ir fazer um cafezinho.
E ficaram os dois ali, no silêncio dos amantes, nos beijos abandonados nos braços um do outro, no alívio do reencontro.
E que Deus abençoe os atrasos!
Beijos mil,
Adri.

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