quinta-feira, 14 de março de 2013

A amante

Celeste nasceu para ser AMANTE!
Isso mesmo, caros leitores. Desde tenra idade havia se apaixonado pela palavra: A  M  A  N  T  E!
Ouviu a mãe e a tia falando sobre a traição de uma vizinha casada, que se tornara AMANTE de um homem, igualmente casado, do bairro.
Nos seus poucos seis anos de vida, à época, achou linda a frase: " Ela é lasciva!"
Não tinha a mínima ideia do que aquilo tudo se tratava, mas soavam-lhe como acordes angelicais.
" Quando eu crescer, quero ser AMANTE".
Para a Celeste menina, seria como escolher uma profissão. Poderia ser professora, médica, advogada ou AMANTE. Simples assim.
Claro que, durante um almoço em família, ela resolveu declarar a sua vocação e foi um desespero em dez atos: O avô engasgou até ficar roxo, a mãe queria saber onde ela havia aprendido a palavra- coitadinha!- o pai deu um murro sobre a mesa e disse que não estava criando uma degenerada.
Pronto. Mais uma palavra que Celeste amou. DEGENERADA! Queria ser isso também.
Claro que, presente a tia Cotoca, fez-se a paz no almoço. A sábia salvou a pele da Celeste, dizendo que criança aprende muitas coisas na televisão e que não tinha noção do que falava. Os pequenos são "papagaios", somente repetindo, sem qualquer maldade.
E a refeição retornou ao rumo normal e o assunto caiu no esquecimento, aplicada a pena de um mês de castigo.
Celeste cresceu e, já adulta e sabedora do que significavam as palavras da infância, permanecia no firme propósito de sê-las.
E o destino irônico entregou o pacote com um laço especial: um padre.
Foi à missa, como de costume e percebeu os lindos olhos de mormaço do jovem padre que assumia a paróquia. O anterior estava muito idoso e adoentado, sendo substituído pelo recém ordenado padre Mateus.
Foi uma missa emocionante. Os poucos fieis saíram falando maravilhas do novo padre.
Num movimento gradual toda a cidade retornava às missas, até então relegadas às senhoras viúvas e às solteironas.
Porém, a Celeste não! Via um lindo homem, com olhos escuros como a noite e a pele como a de um Tuareg,  que atravessou os desertos para ser o seu AMANTE.
Guardou suas más intenções só para si. Nem para o travesseiro ousava se confidenciar. Mas o vírus estava ali, encubado desde os seis anos, aguardando apenas o momento certo.  E ele chegara...
Criou uma estratégia para chamar atenção de Mateus. Ia a missa com roupas castas, os belos cabelos sempre presos, atreveu-se a pedir emprestada a mantilha branca da tia Cotoca e, tiro de misericórdia, foi-se confessar.
CONFESSAR!
Chegou ao confessionário com rosto contrito, terço à mão e mantilha cobrindo-lhe a cabeça.
O padre Mateus, do outro lado da treliça, sequer a percebeu. Sentiu um odor refrescante, vindo da mulher, mas não foi além disso.
E Celeste, tal como uma General, iniciou a sua campanha e, com detalhes, contou ao padre da sua "vocação", dos sonhos que tinha- com todos os detalhes- e pediu o perdão sagrado.
Razoavelmente perturbado, porque até então só ouvira banalidades, explicou-lhe que a libertação estava dada e a mandou rezar cinco Padre-Nossos e cinco Ave-Marias.
Celeste saiu num passo mansinho, de virtude gloriosa e sentou-se no banco mais próximo do padre.
Mateus deu uma olhadela na moça até porque o sacerdócio não lhe redimira da curiosidade. E gostou do que viu.
E assim os dias e semanas se passaram, com idas à missa e confissões cada vez mais picantes, levando o padre Mateus a ansiar pela presença da moça como quem acompanha folhetim, para saber o próximo capítulo.
Após um ano a teia de Celeste estava finalizada. O jovem Padre sucumbiu à lascívia da "degenerada" e de lá não mais saiu. Pediu o seu desligamento do sagrado ofício do sacerdócio e assumiu, publicamente, a sua devoção pelo corpo daquela mulher.
A família teve outro "patatu"- ou "peripaque", como preferirem. O pai ameçou deserdar a filha, a avó agradeceu a Deus pelo marido já não estar mais vivo para sofrer com aquela "vergonheira", a mãe se flagelava querendo saber onde errara e a cidade estava em choque: primeiro pela perda de um excelente padre e, segundo, porque viraram notícia na região.
Celeste não se deu por achada. Era AMANTE de um padre! Lasciva e degenerada!
Ser amante já estava bom. Seria a preferida em relação à esposa.
" Eu, não. Sou a preferida ABSOLUTA. Até em relação a Deus".
Claro que a Celeste jamais articulou um único desses pensamentos em voz alta, nem mesmo com Mateus, que a conhecia, digamos, muuuuuuuito bem.
Fazia o estilo sonsa desde os seis anos de idade, quando a família, de uma forma contundente, lhe ensinou que a verdade causava turbulência- ficou de castigo um mês!- e, a partir de então, consagrou o silêncio e o cinismo como seus aliados.
Mateus cometeu o erro:  apaixonar-se. Pior, a pediu em casamento.
" NÃO! NÃO, MATEUS, PELO AMOR DE DEUS! ESQUEÇA ISSO!", num tom de desespero, se debatendo contra o pedido como se ele fosse corpóreo.
" Mas, Celeste, eu não entendo. Já estou liberado do sacerdócio, continuarei servindo a Deus e o amando, mas terei um espaço enorme, no meu coração, para você e nossos filhos, que ainda hão de vir".
" VOCÊ ESTÁ ESTRAGANDO TUDO!"
Neste ponto, Celeste era uma mulher fora de si. Olhos esgazeados, saltados das órbitas, a pele lívida e suada, as mãos crispadas para os céus, como uma louca que pede ajuda ao nada.
E, para ela, era o final. Ao se casar, deixaria de ser AMANTE, DEGENERADA e toda a lascívia que os envolvia morreria num lar adocicado, com cheirinho de bolo de aniversário.
Ela não deixaria a sua vocação. Nem mesmo por Mateus.
E negou o pedido. Seca. Sem lágrimas. Sem dor.
Mateus, perdido com a negativa, sem entender o que se passava, recorreu aos pais de Celeste que contaram o episódio da infância.
A família se reuniu e decidiu que Celeste deveria ser internada, para um tratamento sério e Mateus percebeu que a amda, lá no fundo, carecia de sanidade. Resignou-se.
Assim foi feito e a mulher foi para uma clínica de repouso.
Mateus foi fazer terapia e lá descobriu que a sua vocação real era a Psicologia, prestando o vestibular e sendo aprovado em primeiro lugar.
Quando as visitas foram liberadas, Mateus foi um dos primeiros a comparecer. Para ele, como no princípio, Celeste se confidenciou, sendo que agora sem a mantilha e o rosto casto:
" Foi ótimo ter vindo para cá, Mateus".
" Que maravilha, querida. Você está bem melhor. Sabe, eu estou fazendo o curso de Psicologia. Descobri a minha real vocação, no fundo, graças à você e a Deus".
" Bom, muito bom mesmo. Mas, deixa eu contar um segredo. De confissão, certo?!", piscando um olho de cumplicidade.
" Certo! Manda ver!"
" Sou AMANTE!"
" Ah, imagino....", achando que a coitada ainda se encontrava em um universo paralelo da consciência!
" Sério! Este lugar é um parque de diversões! Aqui posso ser amante de QUEM eu quiser!"
E Mateus, em desepero, sentiu a verdade nas palavras de Celeste e passou a observar o número de homens que trabalhavam no local.
Pensou: " Não... Não é possível. São profissionais!"
E estremeceu ao perceber que ele também fora um profissional.  E altamente qualificado.
Beijos mil,
Adri.



sábado, 9 de março de 2013

O beijo de Judas

Hoje fui beijada por Judas.
Não aquele pertencente à vida do Messias, do Salvador, mas um desses seres amorais que nos encontram mais vezes do que pretendíamos.
Portanto, vou me utilizar de uma história para aliviar a minha dor. E obrigada se me acompanharem nessa jornada.
" A pele branca não era mais reconhecida em meio a tantas chibatadas. Por suas pernas escorria o sangue vermelho, com cheiro de ferro e em suas costas viam-se tantas marcas que um incauto acreditaria estar diante de um mosaico humano.
Seu algoz, sem qualquer piedade, brandia o chicote no ar e a açoitava, uma após outra, trazendo no semblante um prazer móbido e horrendo.
Tinha as mãos delicadas e o coração de uma serpente. E a mulher lá, quase que rasgando os pulsos com o peso do próprio corpo, inerte na própria dor, agarrava-se a um fiapo de esperança em sobreviver à proxima vergastada.
Creiam-me, amados leitores, a cena foi presenciada por muitos "amigos", desses que somente se dedicam ao pior dos inimigos. Inertes acompanhavam golpe a golpe, o sofrimento daquela mulher.
E vocês devem estar se questionando: que mal ela cometera? Qual foi o seu crime que merecesse tamanha punição?
Muito simples ao mesmo tempo que complexo: decidiu ser JUSTA.
E desde que o mundo é mundo, a história está repleta de justos martirizados, mortos, todos lutando pelo coletivo, por um ideal.
A quebra do sistema traz consigo dois problemas e consequências: o ódio dos poderosos e a inveja.
Sim, queridos leitores, a mulher fora "beijada" e exortada à luta pelo Judas, que se tornou o algoz da nossa história.
O Judas que atiçou o seu espírito de liderança, que chorou em seu ombro por ser um homem fraco e, assim, obteve a sua adesão à causa e a sua habilidade com a melhor das espadas: a argumentação.
Então, serviu-se dela e de sua força, valendo-se da honra que existe em cada célula do sangue que a mulher carrega.
Seis meses depois, a situação almejada é atingida e o Judas se desfaz da mulher, chamada de AMIGA, por temer a sua força. Ele sabe ser simplesmente um Judas. Ah, ao menos sobre isso ele tem conhecimento.
Necessariamente tem que puní-la, para que o seu poder se mantenha e, sem um gesto, sequer, de gratidão, a condena ao degredo e ao flagelo.
Mas, por óbvio, como qualquer traidor, usa capa.
"E quem tem capa, sempre escapa", deixando a mulher com suas chagas e saindo da praça central acompanhado pelo séquito de adoradores, antes "amigos" da mulher.
Mas, cá entre nós: quem além daquela mulher iria se preocupar com o coletivo?
E viva a individualidade! E cada qual que escape com a sua pele intacta e a sua "capa". E a consciência a ser pesada."
Lamentando ser a mulher da história, desejo que Deus dê a cada um o que for de direito.
Adri.

sábado, 2 de março de 2013

E o futuro?

Três árvores conversavam desde pequeninas sobre os seus futuros numa reserva ecológica e reflorestável. Por serem de grande porte, teriam grande quantidade de madeira a oferecer ao mundo.
" Com certeza, serei parte de um transatlântico majestoso, singrando o oceano e sendo motivo de alegrias a todos que em mim viajarem" dizia a primeira ao que, de imediato, era respondida pela que a avizinhava:
" Pois sim, que isso é pouco para mim. Gostaria de servir aos humanos como a madeira de uma linda igreja ou templo, onde houvesse paz e meditação. Um encontro com Deus é o melhor futuro para uma árvore", solenemente encerrava.
A terceira contestava: " Sinceramente, desejo ser uma mansão. Sim, onde somente a pujança e abundância de mim desfrutassem.  Ricos,  famosos e felizes".
A que pretendia a serenidade dos templos ponderou:
" E quem disse a você que este pacote traz a felicidade aos humanos? Pois foram estes ricos que ceifaram muitas de nós, de maneira ilegal e tranformaram o mundo num lugar desequilibrado".
" Querida. Eu não invado os seus sonhos e você não interfere nos meus, ok?!" e assim encerraram a discussão no meio da reserva, acompanhada de perto por várias delas que sequer tinham SONHOS.
Passaram-se muitos anos e várias gerações de humanos até que, numa manhã de sol- já repararam que tenho paixões por manhãs de sol em minhas histórias, apesar de amar acordar tarde?!- e os recolhedores vieram cortá-las. O dia tão esperado havia chegado e o futuro se descortinava, fresco, límpido, como uma tela em branco a ser pintada por um grande artista.
Uma delas estremeceu diante da serra mas foi acalmada pela amiga de tantos anos:
" Acalme-se. É somente uma passagem. Hoje temos raízes que nos impedem de provar o  mundo, de ir e vir. E, se tudo nos for favorável, em breve teremos o que tanto ambicionamos."
E assim foi. Uma dor única acalmada pelo futuro jubiloso.
Cada uma delas teve um destino.
A que pretendia ser um transatlântico foi direcionada para uma fábrica de caixões e, mesmo frustrada, entendeu a sua importância: " De alguma forma, será feita comigo a última viagem, de ricos ou pobres. É digno e me sinto feliz."
A que sonhava em ser um templo ou igreja foi levada para construir um acampamento de verão, que serviria a muitas crianças e jovens barulhentos. No início sentiu-se traída nos seus desejos e revoltou-se. Afinal, pretendia servir ao espírito e não a romances e gincanas juvenis. Depois, ouvindo os comentários dos arquitetos incumbidos da obra, ficou empolgada e percebeu que, de alguma forma, seria útil aos propósitos do Mestre, porque sob seus telhados e sobre seus bancos seriam formadas novas gerações de humanos que, felizes, gerariam uma corrente do bem. E sentiu um estremecimento de alegria.
Quanto à terceira, a que pretendia ser uma mansão, foi destinada à uma fábrica de berços, para classes operárias e menos abastadas. Indignou-se! Fora traída em toda a sua vida de espera.
" Hum... Imagine servir à crianças miseráveis. Fiquei na pior situação possível e serei motivo de chacotas das outras árvores da reserva."
Quando toda a sua madeira havia sido convertida em berços, lindos apesar de simples, com pintura branca e desenhos em rosa ou azul, viu um casal muito modesto, com roupas surradas entrar no stand de exposição dos artigos à venda.
Foram atendidos pelo gerente da fábrica que os explicou que não haveria venda direta ao consumidor e que procurassem um representante da empresa.
O casal, muito jovem na sua igual  pobreza, entreolhou-se e argumentou que, numa loja os preços seriam maiores e puxaram as economias da bolsa da mulher, já com a barriga proeminente, e as mostraram ao gerente.
Irredutível, reafirmou que lá não seriam feitas vendas diretas.
" Senhor, é tudo que temos e nosso filho nascerá sem ter onde dormir. Somos pobres, é verdade, mas queremos dar o que temos de melhor para ele. Já o amamos desde o primeiro momento."
E a árvore, agora tranformada em diversos berços, emocionou-se e desejou ardentemente acompanhá-los nesta jornada. Como não poderia falar, usou de um artifício que aprendera na floresta.
Quebrou-se. Mas só um pouquinho.
" Mas que barulho é esse?" reclamou o gerente e foi até o stand e descobriu um bercinho fora dos padrões de qualidade da empresa.
"Então, o que fará com ele? E é azul, para um menino", ponderou o homem, agarrando ao ponto de suar o dinheiro que estava em suas mãos.
" Vá lá. Leve-o. Para uma loja não será aceito mesmo."
E o casal saiu feliz, cada qual levando uma lateral do móvel e a árvore que ele foi um dia sentia-se deliciada, sonhando com as aventuras que viveria ao lado daquele pequeno humano que estaria por vir.
Beijos mil,
Adri.