segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Deu tudo errado?

Sofia olhou para si e realmente estava deslumbrante no vestido de noiva. Observou por alguns instantes a própria imagem refletida no espelho: linda! Não que fosse linda de fato mas, naquele dia, estava i-l-u-m-i-n-a-d-a!
Continha dentro do seu peito todo um universo de emoções que oscilavam do pânico ao êxtase total. Era o dia do seu casamento e esperou uma vida por ele. Desde muito menina, quando perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia em tom solene: "casada".
Demorou mais do que poderia prever, mas não o suficiente para subir as escadarias da igreja de Santo Antônio sobre os joelhos.
Possuía a pele com o frescor da juventude e os cabelos castanhos ainda reluziam naturalmente.
O pai ostentando um belo traje, trazendo à lapela um cravo branco, deu o seguinte consellho:
"Filha. O casamento é uma aventura na selva. Seja feliz", dando-lhe um beijo na testa e saindo em seguida.
Sofia ficou meio atordoada com aquelas palavras- "ele estaria feliz?, desejando tudo de melhor?"- enfim, sem conseguir se fixar em nada além de si mesma, deixou as divagações saírem pela janela aberta com a brisa que invadiu o quarto.
Olhou para cada objeto e deu um adeus simbólico, pois o seu quarto de solteira não mais a pertenceria. Abriu a caixinha de música, pôs a bailarina ao centro e ficou ali, absorta naqueles pensamentos de uma vida vivida e que se vai. Foi despertada deste torpor pela mãe que bateu à porta e avisou que o carro já a aguardava.
"Já vou!", movimentando-se com pressa e colocando um sorriso nos lábios. Bastava pegar o buquê e ir... "Ué... Cadê o buquê?"
"Mãe!Mãe!MÃE!", descendo as escadas com uma sofreguidão por água no meio do deserto- "A floricultura entregou o buquê?"
"Eu não vi, meu amor, mas deve estar em algum lugar e...", antes que a mãe terminasse Sofia já havia dispensado os sapatos dos pés e estava à procura do buquê pela casa. Olhou até dentro da geladeira, caso algum distraído o tivesse recebido. E nada.
"PAREM TODOS IMEDIATAMENTE! Quem viu o meu buquê?"
Silêncio geral e olha que a casa estava com a lotação esgotada. Eram madrinha de batismo, crisma, irmãs- com seus namorados- os pajens e as damas (acompanhados dos pais) e ninguém havia recebido o buquê ou percebido a sua ausência.
Bom, foi um corre-corre, um abre e fecha de gaveta, um procura daqui e de lá e nada do buquê.
"Vamos ligar para a floricultura, ora!", disse o pajem, no auge dos seus sete anos, enquanto limpava a mão no paletó, do brigadeiro que surrupiou.
Chamou, chamou e ninguém atendia.
"Já devem ter fechado."
A noiva começa a fazer beicinho de choro até que uma alma salvadora, a sábia tia Cotoca, teve a brilhante ideia de substituir as flores pelo terço de cristal, na família há várias gerações.
Pronto, tudo resolvido. Era só por os sapatos e irem para a igreja.
Sofia percebeu que, nessa empreitada de procura, perdera os sapatos de vista.
"ALÔ! ALGUÉM VIU OS MEUS SAPATOS?"
Eram especiais, forrados com o mesmo tecido do vestido e com um ornamento caprichoso na parte de cima, para que ao andar fossem observados. Tudo pensado meses antes.
"Bom, você os soltou na sala, quando procurava o buquê", elucidou a sábia Cotoca.
E foi o corre-corre de antes, sendo que a procura era diversa.
Caros leitores, neste estado de coisas, as crianças que formavam o cortejo já haviam se apresentado, virado amigas, assaltado as bandejas de doces e brincavam de pega-pega.
"Aqui! Achei!", disse a irmã mais nova, Beatriz, que segredou para a amiga-"quem acha sapato de noiva é a próxima a casar!"
"Quem falou?!", contestou a amiga.
"Eu sinto isso."
"A gente só tem quatorze anos, Bia".
"Mas vou casar primeiro que você!", mostrando a língua num ato de extrema maturidade.
Sofia resgatou os sapatos e os calçou, como se fossem os da Cinderela indo ao grande baile.
Sentada, tomou um fôlego para se recompor e, ao se levantar percebeu um rasgo na meia.
"Valha-me Deus!" e sem delongas, retirou o par e decidiu ir sem meias, para evitar um acidente a mais.
Pronto. Tudo encerrado, as crianças já haviam sido capturadas e limpas- na medida do possível...- e agora sim, iam em direção aos carros quando alguém deu o alerta:
"Xiii! O vestido da noiva está rasgado!"
Sofia olhou para baixo, para os lados e nada errado.
"Onde?"
E a mãe foi, coitadinha, o carrasco da situaação:
"Filha, mantenha a calma. Acontece nas melhores famílias. Dia de casamento sempre tem situações inusitadas, que após muitos anos viram motivos de gargalhadas nos almoços de família e...", antes que terminasse com o calmante cerebral, a filha - histérica- repetia:
"ONDE?", com os olhos flamejando, arregalados de uma tal forma que o Jorginho- um dos pajens- resolveu comentar, entre gargalhadas:
"Tá parecendo o dragão do Shrek!", acompanhado por um "cortejo" de crianças suarentas, meio amarrotadas, com os cabelos desgrenhados e mães, desesperadas entre ajeitar os pimpolhos e conterem os próprios risos.
Jorginho respondeu, se jogando sobre um sofá:
"No rabo!" e haja gargalhada, sendo acompanhado no projeto "como enlouquecer a Sofia" pelos demais convivas.
Sim, a cauda estava rasgada mesmo. Não era um cerzidinho qualquer que resolveria a questão, não.
Era um rasgo fatal, separando o vestido na dobra dos joelhos para baixo, na horizontal.
Sofia não aguentou mais. Jogou-se no chão e chorou. Estava uma hora atrasada, o noivo já havia telefonado umas dez vezes e ela dizendo que "estava chegando", o vestido rasgado, sem as meias e o buquê. Derrota total.
"Querida, não chora não! A maquiagem é a prova d'água mas os seus olhos vão ficar inchados, meu bem, e isso eu não tenho como consertar", instruía Margot, a maquiadora das estrelas da TV.
"Olhos inchados?! Meu coração está aos pulos e você me pedindo para NÃO CHORAR! Saia já daqui!", largando em cima da pobre Margot todo o desespero de sua alma.
A mãe, mais equilibrada que trapezista sem rede de segurança interveio e acalmou a maquiadora- que se sentiu ultrajada, porque nem os maiores astros e estrelas a tratariam desta maneira- que permaneceu na casa para retocar a noiva, após o Tsunami que lhe escorria dos olhos.
Celulares tocando, convidados na igreja sem entender as quase duas horas de atraso.
Sofia, repentinamente, estancou. Subiu lentamente as escadas, segurando a cauda rasgada. Todos ficaram em alerta, para que ela não cometesse algum desatino. Afinal, não seria para tanto e o noivo continuava a esperar. Portanto, haveria o casamento!
"Filha, eu vou com você", acudiu a mãe, subindo logo atrás.
"Não. Quero ficar um pouco só."
A mãe fingiu acatar e foi em seguida, ouvir por detrás da porta do quarto de Sofia, fechado à chave.
Parecia uma cena de filme de suspense: todos sentados, nenhum murmúrio- nem mesmo o Jorginho se atrevia-  paralisados como se esperassem entrar o detetive da história, dizendo: "o culpado é o mordomo!"
Dentro do quarto, Sofia olhou-se no mesmo espelho de antes e viu a horrenda imagem de agora, tão destoante daquela.
Refletiu durante uns cinco minutos, sentiu a brisa fresca que permanecia sua companheira e foi para o banheiro. Fechou a porta.
Calmamente desfez o penteado, pousou na bancada a tiara de cristais, descalçou os sapatos e, por fim, retirou o vestido, amarfanhado, com a barra meio desfeita e rasgado na cauda. Observou-o atentamente e percebeu que vários cristais haviam caído nas correrias daquelas duas horas de desespero. Pensou em Bruno- "deveria estar nervosíssimo à sua espera, postado no altar" e decidiu dar um fim naquilo tudo. Seu pai estava certo: "o casamento é uma selva".
Abriu o chuveiro e tomou o banho mais gelado de sua vida. Lavou os cabelos, a maquiagem- que era realmente boa e não saiu!- e todas as tristezas daquele dia.
Enxugou-se e foi enrolada na toalha para o quarto. Olhou-se no espelho novamente e viu-se bem melhor.
Foi até o armário e buscou o melhor vestido de baile que tinha e, por sinal, era vermelho. Colocou-o sobre a cama e buscou os sapatos que faziam parte do look- prateados.
Secou os cabelos do jeito que costumava fazer. Vestiu-se.
Ao abrir a porta quase caíram juntos a mãe, o pai, a tia Cotoca e uma fila de amigos e parentes que ocupavam cada qual o seu degrau e houve um certo alívio em vê-la viva.
Todos se endireitaram como se não tivessem sido flagrados e a própria Sofia terminou com a tensão:
"Vamos?"
"Assim?!", questionou o pai, meio assustado em conduzir uma noiva de vermelho.
"Se é uma selva, serei o espécime mais interessante que já se viu."
O pai, é claro, sentiu um orgulho incrível daquela filha que, ao cair, aprendeu a crescer e sair da ilusão.
"E o é, minha querida. O mais belo e estonteante pássaro de fogo jamais visto."
Desceram juntos, braços dados, seguidos pelo alívio de todos os convidados.
Neste instante, ouve-se a campainha:
"Senhora, entrega de um buquê".
" O senhor deve estar enganado. Como pode ver, aqui não há uma noiva", contestou Sofia, apontando para o lindo vestido vermelho"
"Mas o endereço que tenho é este. Esqueceram de enviar antes. Será que a noiva já se foi?".
"Querido, tente o nº 125, lá no final da rua."
"Obrigada, senhora e desculpe-me o incômodo".
"Sofia, não é no 125 que mora a dona Catarina, aquela senhora que namora entregadores de pizza?"
"Por isso mesmo. Quem sabe ela não muda de gosto?!", dando uma piscadela ao pai,  levando consigo o terço de cristal.
Beijos mil,
Adri.







quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Portão de embarque: o seu destino

Sentia o amor penetrar em sua pele. Os pelos do braço eriçaram quando ele tocou de leve a sua mão.
Era como se a vida começasse ali, naquele minuto exato em que se esbarraram no aeroporto.
Isabel era geóloga e havia se graduado numa das melhores universidades do mundo e o amor sempre ficara em segundo plano. De família pobre, conseguira uma bolsa de estudos integral e emigrara, levando consigo toda a coragem que possuía e algum dinheiro no bolso. Sua miserável existência se resumiu, até então, a ser exemplar como acadêmica, pesquisadora e tudo o mais que envolvesse o racional. Com isso, tornou-se uma raquítica emocional, mas excelente palestrante.
Naquela tarde, bem no meio do aeroporto em que faria a conexão foi, digamos, "abalroada" por um espécime masculino que lhe fez vibrar as cordas da sua alma. Seu corpo sucumbiu a presença de um homem, sem quaisquer lógicas ou estudos anteriores. Sem hipóteses. Sem teses.
Sentiu-se um animal no cio e começou a se tremer, como uma doente terminal.
O homem sequer percebeu o feitiço que lançara naquela desconhecida. Determinado, tentava pegar todos os papéis que derrubara no chão e, por ironia do destino, atingiram distâncias inimagináveis.
E ela ali, meio acocorada, sem tirar os olhos dele, das suas mãos ágeis, do seu embaraço e constrangimento. Apenas olhava e sentia. E desejava.
O homem finalmente terminou a tarefa e levantou-se, estendendo a mão direita para que ela fizesse o mesmo. Ela a ofereceu como quem dá o corpo inteiro, num despudor de meretriz.
Só então ele percebeu o feitiço do qual era parte ativa. Sentiu a mesma vibração que ela, quando dentro de sua mão sentiu a vida daquela mulher a palpitar nas veias, veias onde até hoje nunca, jamais correra um sangue tão escarlate assim.
Sem trocar uma única palavra, saíram do aeroporto lado a lado, sem desviar o olhar um do outro, sem perder a cadência dos passos.
Entraram num táxi e foram para o hotel mais próximo. Num quarto digno de uma rameira, Isabel entregou-se ao desespero, à luxúria e olhou-se nua no espelho. Os cabelos em desalinho, a pele avermelhada pelos tapas e beijos violentos, aquele desconhecido a lhe possuir como se dela fizesse parte, conhecendo todos os mistérios do corpo que nunca fora, sequer, dela mesma.
Atordoados, famintos, cansados e embriagados do frenesi do sexo feito sem ressalvas, lançaram seus corpos, lado a lado, sobre o colchão gasto, recoberto com lençol marcado por cigarros.
Não houve palavras. Nada quebraria aquele silêncio eloquente, que berrava sem palavras ou gestos.
Isabel arrastou-se até o banheiro e tomou o melhor banho da sua vida. Lavou as culpas, as fobias e pelo ralo, no redemoinho formado pela água que lambia o seu corpo, levava junto as correntes que a subjugaram durante anos.
Cheirou profundamente a toalha de banho, quase sem felpa de tão gasta e sentiu um odor diferente. Sentiu-se aventureira, mentirosa, cortesã. E gostou.
Gostou de ver o corpo nu diante do espelho. Descobriu os seios, passou a mão pela barriga, mediu o umbigo com a ponta do dedo indicador. E adorou
Percebeu que nunca se vira assim. Tão nua e tão...plena. Sem qualquer direção e tão segura.
Voltou ao quarto e observou o homem, com o corpo parcialmente coberto pelo lençol amarrotado, o peito subindo e descendo numa respiração profunda, de quem adormeceu feliz. Sorriu.
Sem nome: sem passado e sem futuro, decidira ali. Olhou-se novamente no espelho, jogando a toalha aos pés, num ato brutal, como se fosse nua para a rua contar a todos o que vivera.
Vestiu-se lentamente, lamentando ter que partir. Calçou os sapatos negros, com saltos modestos. Olhou com desaprovação.
Pensou em secar os cabelos mas desistiu. sairia com eles molhados e secariam ao sabor do vento.
Beijou a testa do homem ternamente, agradecida pela sua liberdade e saiu, com um leve gingado nos quadris, daquele jeito que somente as mulheres que foram meretrizes- ao menos uma vez na vida- conseguem oferecer aos olhos do mundo.
Desceu pelas escadas, carregando a bolsa pela pontinha dos dedos e a pasta como se fosse chumbo.
Pagou a conta e avisou que o seu acompanhante dormia e que o acordassem depois que ela se fosse de vez.
Ao sair observou que, do outro lado da rua, havia uma sapataria. Chegando ao local, sentenciou:
"Sapatos vermelhos. Saltos altíssimos. Agulha."
A vendedora estranhou ao ver o par que ela calçava: austero e de grife.
"Senhora, temos outros modelos, da grife que a senhora está usando, que condizem mais com a sua figura".
Isabel gargalhou de tal maneira que a vendedora sucumbiu ao que fora pedido.
Calçou-os.
"Perfeitos!", pagando e se retirando rapidamente da loja.
"Senhora, senhora. Esqueceu os que calçava", alertava a vendedora que se esticava na pontinha dos pés, acenando na porta da loja.
Isabel virou-se calmamente e foi taxativa:
"Queime-os!"
E lá se foi a mulher, num terninho negro, sapatos vermelhos e um gingado que hipnotizou todos os homens que por ela passavam. Entrou num táxi e deu o destino:
"Aeroporto, por favor".
Em lá chegando, foi ao balcão da companhia:
"Perdi meu voo"
"Temos outro, para o mesmo destino, com embarque imediato".
"Não querida. O meu destino não era este".
Beijos mil,
Adri.