NASCEU! Gritou a parteira, como se tivesse ganho a Copa do Mundo. E nos pênaltis!
Enlaçada
no próprio cordão umbilical, meio arroxeada, veio ao mundo Helena, a
única criança a vingar em seis tentativas, nos quinze anos de casamento
dos pais.
Cidade pequena. Minúscula. De tal forma que o nome se tornou maior que a própria:
Miracema do Passo de São José do Alto do Rio Preto da aleluia de Deus.
Agora, pare e pense: Quantas ruas deveriam existir numa cidade como essa?
Errou! Apenas uma, com meia igreja (porque as obras nunca acabaram) e uma cadeia.
Crimes: Somente os chinfrins.
Havia
o seu Eusébio, que bebia de vez em sempre, a dona Aurora, que só batia
no seu Eusébio quando ele bebia e o Chicão, que se aproveitava da
situação dos dois para surrupiar umas penosas.
E era tudo o que acontecia...
Mas, mesmo neste contexto de zero a zero, Helena desejava, no fundo de sua alma de criança, ser "polícia".
"Ah!
Prender um bandidão igualzinho ao dos filmes- Pare em nome da lei!",
exercitava diante de qualquer um que passasse à sua frente, até mesmo a
tartaruga da tia Cotoca.
Sempre
que podia, assistia os filmes de "Polícia e Ladrão" na casa do padre
(que os comprava por duas Mariolas - vendendo os ingressos para
"terminar" as obras da igreja) e sentia o corpo levitar.
Os anos se passaram naquela vidinha de brisa morna e mosquito morto à bofetadas, até que Helena se tornou mulher.
Agora sim, iria para a capital terminar os estudos, tendo que ouvir os "conselhos" dos pais:
"Coisa
mais linda é cuidar de menino. Ter filha médica...", suspirava dona
Eulália, enquanto o seu Genésio, como homem e pai, tinha a palavra
final- " Helena, ouça seu pai. Tenho experiência de vida e sua mãe está
certinha. Uma lindeza filha doutora...". Ela nem se deu por achada.
Partiu rumo à capital e ao seu sonho, terminou os estudos e prestou concurso público para a Polícia do Estado.
APROVADA!
Todo o seu ser era pura felicidade, genuína, imorredoura. "Agora sou
Inspetora de Polícia!", repetiu mil vezes até o seu cérebro acostumar ao
título e, é claro, em todos os telefonemas que recebeu.
Após
a posse, escolheu exercer a lei na sua cidade natal, Miracema do Passo -
bem, o restante vocês já sabem- mesmo porque ninguém quis a colocação.
Chegando
na cidadezinha - que Helena não me ouça- foi recebida com banda tocando
( ui...) no coreto improvisado, o Prefeito entregou a chave da cidade e
da cadeia ( Já que o Delegado acumulava todas as cidades do entorno) e,
de fato, de fato, ela seria A AUTORIDADE.
Os pais, lágrimas aos olhos, se consolavam: " É, minha velha. Não foi médica, mas é Doutora, ora!".
"
Isso lá é coisa para mulher, homem. Criei a menina para casar, ter
filhos e, até que trabalhasse, vá lá, mas sendo professora, médica de
menino...", saindo como um dó de peito da pobre dona Eulália, que não
aceitava "essas modernidades".
A
realidade foi mais dolorosa que o desencanto dos pais: Helena andava de
um lado para o outro, na rua (lembrem-se- era uma única!), com a
pistola no coldre, nos arredores, estradas e nada... Nem um sumiço de
calcinha acontecia. Até o Chicão se conteve com a presença da AUTORIDADE
na cidade.
Ela treinava, religiosamente, a sua pontaria nas latinhas que a molecada, no maior orgulho, recolhia para a "Doutora".
" Quando ela prender bandido, tem que fazer bonito", dizia Zezinho, enquanto recolhia mais uma no matagal.
Mas
a coitadinha da pistola, depois desse exercício diário, chegava a
roncar dentro do coldre até que, num dia como outro qualquer, acertou um
tiro bem no meio, mas foi bem no meio do olhinho do...
elefante que estampava a lata de extrato de tomate e Helena ouviu, ao longe, um gemido, vindo da mata.
Correu
na direção do som, pensando ter acertado algum animal. Se fosse de
estimação, estaria enrolada com um dos vizinhos "que a pegaram no colo
quando era assim, deste tamanho"-argh, porém, caso fosse animal
protegido pela lei, o enrosco era maior: Crime.
Interessante...Viu a silhueta de um homem, meio caído, sangrando.
Que
sorte a da Helena. Ser humano dá pena menor que animal em extinção!
Prosseguindo a história, a gloriosa Doutora acudiu o homem, fez um exame
superficial, observou que o alvejou de raspão e só.
Ajudou
o tal a se levantar e aí sim, observou o espécime masculino: Alto,
moreno de sol, olhos verdes, tatuagens mil ( de "Amor de mãe", dentro de
um coração flamejante a "Vingança" em vários idiomas- até em
Mandarim!).
Nada
falaram até a rua principal- Por que principal se só há uma?!- Ele, pela
dor. Ela, pela timidez que a silenciou diante de tamanha beleza.
Ao
chegarem a Delegacia, tratou de consultar a folha de antecedentes
criminais do sujeito (Lindooo!) e sentiu um aperto no estômago: Havia
tantos artigos do Código Penal ali que daria para numerar TODAS as casas
de Miracema do Passo (bom, vocês já sabem, né?!) e das adjacências.
Ah! A sua hora chegou e, finalmente, falaria como nos filmes: " Marcelo, né?!"
Sentado, levantou calmamente os olhos verdes e assentiu com a cabeça.
"Pare em nome da lei!"- Isso, isso, isso! Só faltava dar pulinhos.
" Senhora, com todo o respeito, eu JÁ estou parado, Delegada".
"Inspetora. Inspetora".
E
lá foi o morenaço, conduzido pela nossa heroína de Miracema de não sei o
quê, para o xilindró, que de tão inútil, tinha a porta fechada com
arame.
Helena correu
para arranjar um cadeado com a tia Cotoca - "Nossa, Heleninha. Por esse
eu até voltava à ativa. Ai...", exclamou a sábia veterana que se
prontificou a fazer o curativo no rapaz.
E
assim foram passando os dias sem que houvesse o comunicado oficial da
captura deste marginal tão procurado. Ele era " Marcelinho do pó", com
mandados de captura em todo o país e Helena ali, silenciosa em relação
ao Comando Geral.
Surpreendia-se esquadrinhando o homem...
Quando
estava fora do horário de trabalho, a cidade queria saber qual o crime
de " Marcelo Bonitão"- para eles, era esta a alcunha- e a resposta era
sempre a mesma: " Não quis casar com uma moça e fugiu", findando o
assunto.
Certo dia, Helena tomou coragem e abriu o cadeado da cela.
" Vai!"
"NÃO!"
E nesse vai-não-vai se atracaram ali mesmo, daquele jeito que homem e mulher se atracam e não é briga.
O dia seguinte chega acompanhado de um escândalo: "FUGIRAM!", gritava a dona Erotildes, fofoqueira-mor da cidade.
Procuraram por todos os lados, nas cidades vizinhas e nadica de nada. Nem rastro dos dois.
Sobre a mesa da Delegacia, as duzentas folhas de crimes de Marcelo e, escrito a batom vermelho com a letra de Helena, o recado: " Fui com ele para não voltar".
Loucura
geral, o Comando foi informado pelo Prefeito - " Eu, cá comigo, sempre
soube que essa tal Helena não prestava"- repetia ao ser entrevistado.
E assim passaram ambos a serem foragidos e...Procurados!
Os anos voaram,
até que, num assalto a banco em uma grande cidade, as câmeras de
segurança da agência filmaram uma mulher loura platinada, cabelos longuíssimos, calça de couro preto, botas com o cano acima do joelho-
equilibradas num salto agulha de uns quinze centímetros- e seios que
pulavam do decote, como dois suicidas. Nas mãos, além da enormidade de jóias,
trazia uma escopeta e, ao redor da cintura, duas granadas, duas
pistolas e munição para deflagrar a " Terceira Guerra Mundial", liderando um bando de
homens igualmente "gentis e refinados".
À noite, durante o telejornal, vem a notícia:
" LENINHA TIROTEIO BARBARIZA EM MAIS UM ASSALTO A BANCO", fazia a chamada, o apresentador.
E,
numa casa qualquer, a "Leninha Tiroteio" assistia a tudo, orgulhosa de
si mesma, o seu nome na televisão- horário nobre!- " Finalmente, o meu
sonho se tornou reallidade, com mais ação do que eu supunha...",
filosofava esparramada no sofá. Só sentia desgosto porque não poderia
dizer o " Pare em nome da lei". Mas, tudo bem... Gargalhou, pensando: "
Agora é mãos ao alto que a grana tá dominada".
Saiu dos seus devaneios e lembrou-se do jantar.
" Porra, Marcelo! Esse jantar sai ou não sai?".
"
Amor, eu fico aqui o dia inteiro preso, cuidando das crianças. Você não
conversa mais comigo, nem reparou que eu cortei o cabelo como você
pediu...- engolindo um choro furtivo, amassando o avental com motivos
florais- não tenho mais meu bando, você agora é a chefe e eles nem me
respeitam mais..."
" Tá
reclamando, Marcelo? Eu dou um duro danado, chego em casa e nem o
jantar tá pronto e você fica aí, choramingando? Sou eu quem arrisca a
pele todos os dias para pôr comida na mesa e encontro você assim,
cheirando a cebola? Antes você era todo perfumado, gatinho e EU estou
errada?"- pegando a bota com o salto quinze, numa atitude ameaçadora.
" Não amor. Eu é que estou meio sensível hoje..."
" Termina logo essa gororoba que eu tenho que descansar".
E
Marcelo, enxugando as lágrimas no avental, apaga o arroz e esquenta a
mamadeira do caçula, dentre os três filhos que estão agarrados às suas
pernas.
Beijos,
Adri.
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