Dois de novembro. Dias dos finados.
Isabela colocou o tailleur
negro de maneira calma e ritualística. Pôs o colar de pérolas legítimas
que o falecido marido lhe dera no primeiro aniversário de casamento.
Olhou-se no espelho. Estava incrivelmente perfeita para a ocasião.
Arrematou
o visual com um batom vermelho encarnado, para contrastar com a pele
alva e o luto fechado. Sorriu com o canto da boca.
Resolveu optar por um perfume clássico e delicado. Sorriu novavamente.
Era
um luto especial. Arthur morreu em um acidente de carro, caixão fechado
e todo o mais. Passaram-se sete anos e, desde então, a jovem e bela
viúva ia ao cemitério em todas as ocasiões solenes para "visitá-lo".
Mas sabem como são estes dias em cemitérios de cidades grandes, principalmente em países tropicais.
Tem
menino soltando pipa, moleques "reciclando" as flores postas nos
túmulos - que, imediatamente após a saída dos parentes, são retiradas e
revendidas- homens sugerindo a limpeza de jazigos por preço de faxina de
mansão, fãs histéricas chorando por cantor famoso (e que já se foi há
cinquenta anos) enfim, aquela maravilhosa vitalidade que apenas nas
datas especiais se vê nos cemitérios, em especial nos Finados.
Isabela
era mais uma nessa selva, compenetrada, medindo cada passo dado,
olhando as lápides até chegar ao Arthur. Lá estava ele, quarenta e
poucos anos, Magistrado influente. Morto! Mortinho da Silva!
Queridos leitores. Contenham a pena e as lágrimas. Não havia nada de bom naquele homem. Nada.
Portanto, economizem os lenços de papel.
Prosseguindo
a nossa história, Isabela postou-se diante do túmulo. Iniciou um
Pai-Nosso, uma Ave-Maria e nada. Estava apenas ali, olhando para a foto
daquele homem, que tantas vezes a humilhou, traiu...
Predadora,
observou o seu entorno. Focalizou-se num jovem homem, jogado sobre um
túmulo de mulher, rosas vermelhas caindo-lhe das mãos.
" Bela cena. Lindo homem. Parece modelo".
E na concentração da cena, tornou-se cúmplice daquele estranho e sua dor. Aquilo sim era amor.
" Está vendo, Arthur, a diferença do amor para o que você dizia sentir?", disse em tom confidencial para a fotografia na lápide.
Sentiu
uma inveja obscena da morta. Mas não teve vergonha dos seus
sentimentos. Poderia possuí-los, a todos, por merecimento das mágoas que
trazia no peito.
Num repente, daqueles que muitos de nós já
sentiram, o belo homem percebu-se observado e o seu olhar cruzou com o
de Isabela, sob o sol escaldante que a fazia mais pálida e com os lábios
mais encarnados.
Tocou o colar de pérolas com as pontas dos dedos, como uma serpente que prepara o bote.
Dirigiu-se, a passos lânguidos, até o jovem rapaz e se apresentou: " Isabela. Meus sentimentos."
"
Victor...", lágrimas rolando pelo rosto de Apolo, os olhos negros tendo
as pálpebras como cortinas, injetados de tanto chorar e uma covinha no
queixo, finalizando como moldura este belo quadro Renascentista.
" Quem era esta bela mulher?", indagou Isabela.
" Noiva amada. Acidente de carro", lacônico e aturdido.
Isabela
esforçou-se para manter a seriedade. Dentro de si, todas as suas
células gargalhavam em profusão de sensações mundanas, diante da
coincidência amiga de seus planos.
Forçou uma lágrima, conseguida com as péssimas recordações deixadas pelo finado marido.
Victor,
comovido, num relance a abraçou e ali deixou-se acomodar, entregando-se
a ela. Ele chorava a ausência do grande amor e Isabela a sua falência
moral e afetiva. E, neste abraço eloquente em silêncio, ela contou a sua
história e o luto de sete anos.
Alguns minutos se passaram até que, recobrada, Isabela apartou-se de Victor, falseando um pudor que não era seu. Não mais.
Ele
deteve-se num olhar morno, percebendo-a linda, no negro do luto, no
encarnado do batom, na palidez da pele de viúva inconsolável.
Isabela fez que se retirava e o homem a travou pelo braço.
" Vamos beber alguma coisa?", hesitante.
E, antes de responder qualquer coisa, sentiu que a presa caíra na armadilha. Bastaria calma...
" Agora? Eu nem o conheço e não sou dessas, que vão com qualquer desconhecido".
" Jamais!", indignado. " Percebi que temos tanto em comum, o mesmo amor por quem partiu, a mesma devoção, a ausência doída."
Assentiu com a cabeça, deixando no rosto um ar de pudor, de castidade que comoveu Victor e o estremeceu nas entranhas.
Saíram do local com as mãos se procurando, com leves toques e o suor dos trópicos.
Enquanto isso, Isabela se felicitava pela caríssima lingerie vermelha que comprara na véspera e como seria bem usada com Victor.
Claro, queridos amigos, que somente até o Natal, quando a CAÇADA recomeçaria.
Beijos,
Adri.
O texto é primoroso. Como sempre, brilhante. Tem o toque o gênio! Parabéns!!!
ResponderExcluirMarido como este só o meu!
ExcluirAgradeço imenso, principalmente, a parceria paciente e compreensiva.
Beijos,
Adri.