quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A caçada

Dois de novembro. Dias dos finados.
Isabela colocou o tailleur negro de maneira calma e ritualística. Pôs o colar de pérolas legítimas que o falecido marido lhe dera no primeiro aniversário de casamento.
Olhou-se no espelho. Estava incrivelmente perfeita para a ocasião.
Arrematou o visual com um batom vermelho encarnado, para contrastar com a pele alva e o luto fechado. Sorriu com o canto da boca.
Resolveu optar por um perfume clássico e delicado. Sorriu novavamente.
Era um luto especial. Arthur morreu em um acidente de carro, caixão fechado e todo o mais. Passaram-se sete anos e, desde então, a jovem e bela viúva ia ao cemitério em todas as ocasiões solenes para "visitá-lo".
Mas sabem como são estes dias em cemitérios de cidades grandes, principalmente em países tropicais.
Tem menino soltando pipa, moleques "reciclando" as flores postas nos túmulos - que, imediatamente após a saída dos parentes, são retiradas e revendidas- homens sugerindo a limpeza de jazigos por preço de faxina de mansão, fãs histéricas chorando por cantor famoso (e que já se foi há cinquenta anos)  enfim, aquela maravilhosa vitalidade que apenas nas datas especiais se vê nos cemitérios, em especial nos Finados.
Isabela era mais uma nessa selva, compenetrada, medindo cada passo dado, olhando as lápides até chegar ao Arthur. Lá estava ele, quarenta e poucos anos, Magistrado influente. Morto! Mortinho da Silva!
Queridos leitores. Contenham a pena e as lágrimas. Não havia nada de bom naquele homem. Nada.
Portanto, economizem os lenços de papel.
Prosseguindo a nossa história, Isabela postou-se diante do túmulo. Iniciou um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e nada. Estava apenas ali, olhando para a foto daquele homem, que tantas vezes a humilhou, traiu...
Predadora, observou o seu entorno. Focalizou-se num jovem homem, jogado sobre um túmulo de mulher, rosas vermelhas caindo-lhe das mãos.
" Bela cena. Lindo homem. Parece modelo".
E na concentração da cena, tornou-se cúmplice daquele estranho e sua dor. Aquilo sim era amor.
" Está vendo, Arthur, a diferença do amor para o que você dizia sentir?", disse em tom confidencial para a fotografia na lápide.
Sentiu uma inveja obscena da morta. Mas não teve vergonha dos seus sentimentos. Poderia possuí-los, a todos, por merecimento das mágoas que trazia no peito.
Num repente, daqueles que muitos de nós já sentiram, o belo homem percebu-se observado e o seu olhar cruzou com o de Isabela, sob o sol escaldante que a fazia mais pálida e com os lábios mais encarnados.
Tocou o colar de pérolas com as pontas dos dedos, como uma serpente que prepara o bote.
Dirigiu-se, a passos lânguidos, até o jovem rapaz e se apresentou: " Isabela. Meus sentimentos."
" Victor...", lágrimas rolando pelo rosto de Apolo, os olhos negros tendo as pálpebras como cortinas, injetados de tanto chorar e uma covinha no queixo, finalizando como moldura este belo quadro Renascentista.
" Quem era esta bela mulher?", indagou Isabela.
" Noiva amada. Acidente de carro", lacônico e aturdido.
Isabela esforçou-se para manter a seriedade. Dentro de si, todas as suas células gargalhavam em profusão de sensações mundanas, diante da coincidência amiga de seus planos.
Forçou uma lágrima, conseguida com as péssimas recordações deixadas pelo finado marido.
Victor, comovido, num relance a abraçou e ali deixou-se acomodar, entregando-se a ela. Ele chorava a ausência do grande amor e Isabela a sua falência moral e afetiva. E, neste abraço eloquente em silêncio, ela contou a sua história e o luto de sete anos.
Alguns minutos se passaram até que, recobrada, Isabela apartou-se de Victor, falseando um pudor que não era seu. Não mais.
 Ele deteve-se num olhar morno, percebendo-a linda, no negro do luto, no encarnado do batom, na palidez da pele de viúva inconsolável.
Isabela fez que se retirava e o homem a travou pelo braço.
" Vamos beber alguma coisa?", hesitante.
E, antes de responder qualquer coisa, sentiu que a presa caíra na armadilha. Bastaria calma...
" Agora? Eu nem o conheço e não sou dessas, que vão com qualquer desconhecido".
" Jamais!", indignado. " Percebi que temos tanto em comum, o mesmo amor por quem partiu, a mesma devoção, a ausência doída."
Assentiu com a cabeça, deixando no rosto um ar de pudor, de castidade que comoveu Victor e o estremeceu nas entranhas.
Saíram do local com as mãos se procurando, com leves toques e o suor dos trópicos.
Enquanto isso, Isabela se felicitava pela caríssima lingerie vermelha que comprara na véspera e como seria bem usada com Victor.
Claro, queridos amigos, que somente até o Natal, quando a CAÇADA recomeçaria.
Beijos,
Adri.

2 comentários:

  1. O texto é primoroso. Como sempre, brilhante. Tem o toque o gênio! Parabéns!!!

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    1. Marido como este só o meu!
      Agradeço imenso, principalmente, a parceria paciente e compreensiva.
      Beijos,
      Adri.

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