quarta-feira, 24 de abril de 2013

A depilação

Guilherme respirava fundo enquanto aguardava na sala de espera. Pensava em tudo o que aprendera com as aulas de Yoga e tentava a calma mais profunda do ser. Não funcionou.
Levantou-se e pegou uma dessas revistas próprias para emburrecer, onde só se olham as fotos.
Também não conseguiu desplugar.
Até que a recepcionista chamou o seu nome:
" Guilherme. Por favor, acompanhe-me até a cabine".
O homem, na faixa dos trinta anos, bem sucedido na carreira, teve uma vontade irresistível de chamar pela mãe. Mas se conteve. Esboçou um sorriso amarelo como foto antiga e acompanhou num compasso emudecido a moça pelo corredor iluminado.
Chegou a cabine, padronizada pelo sistema de franquia, com cor fria e sensação de higiene.
Sim, queridos leitores. Apenas temos a "sensação" porque, na realidade, sempre imagino se vou pegar sarna ou qualquer outra coisa com ceras que dizem ser "recicladas". Enfim, retomemos a nossa história.  Uma outra jovem entrou no local e o revitalizou com um sorriso sincero:
" Bom dia, senhor Guilherme. Eu sou a Thaís. É a sua primeira vez?"
" Sim- extremamente constrangido- e espero me sair bem..."
" Não vai doer como dizem. Eu sou muito especializada.", terminando a conversa mexendo o recipiente da cera com uma espátula.
"Se estiver quente para o senhor, avise-me, ok?!"
" Hum, hum"- automaticamente- pretendendo entender o "quente para o senhor". Se era a primeira vez, como teria um termostato?
"Só o peitoral, senhor? Braços?"
" Obrigado, Thaís. Só o peitoral, claro, incluindo a barriga"
" Entendido", terminando com um sorriso que de meigo foi a sádico. Guilherme pensava o que teria levado aquela jovem a seguir uma profissão tão...tão... SÁDICA! Depilar pessoas como avó Cotoca retirava penas das galinhas- e patos- que comiam aos domingos. Agora ele era a caça!
Sentiu  a espátula passando a cera dourada sobre o peito e espalhar até a região do umbigo.
"Uau! Até que era gostosa a sensação! Poxa, e as mulheres dizem que é ruim, difícil. Nossa! É até afrodisíaco" e agradeceu a Deus estar com uma calça Jeans e não com um short ou moletom...
Thaís ligou o ventilador e a cera endureceu, quando esfriou.
" Preparado, senhor Guilherme?"
E Guilherme, num estado de semiconsciência, naquele esquema soninho bom, fez um novo "hum, hum", sem ter qualquer preocupação na mente.
E...crash! Uma lapa de cera saiu com uma tonelada de pelos que acompanharam Guilherme desde a puberdade e faziam parte das suas memórias.
A depiladora deu um sorriso de vitória e acrescentou: " Ótimo! Saíram sem deixar o bulbo".
Guilherme tremia-se todo. Sentiu a alma sair do corpo, como nos documentários que assistia na Tv por assinatura. Aqueles que falam sobre pessoas em coma que vêem os seu corpos, a alma boiando por cima. Sabem?! Então, o homem não deu um grito, mas perdeu as cores.
" O senhor está bem?", ar preocupado com um possível desmaio- coisa corriqueira quando a depilação é em homens.
" TÔ ÓTIMO DEMAIS!", gritando a dor que sentia, tentando entender o que o levara até ali.
"Ah, foi pela Bianca",  lembrou-se, a figura da Thaís meio desfocada pelas lágrimas que invadiram os seus negros olhos.
A Bianca era uma mulher linda, cobiçada pela macharada, uns vinte anos que malhava na mesma academia que o coitado. E ele, como todos- incluindo o pipoqueiro da esquina- acabou se apaixonando pela moça. Numa conversa, enquanto dividiam o aparelho de musculação, ela demonstrou um certo nojinho por pelos e fez uma cara equivalente ao sentimento de repulsa.
O Guilherme percebeu que, mesmo se fosse o homem mais interessante do mundo, seria derrubado pelos pelos.
Daí para a depilação foram dois palitos de tempo.
"Senhor... Senhor... podemos continuar?"
"CLARO!", como um General que vai ser trucidado, mas com sua honra impoluta.
Aliás, "impoluta" é uma palavra linda, não é?! Pena que poucos irão gostar... Vou melhorar: intacta!
Prosseguindo, a depiladora terminou o serviço, deixou o Guilherme liso como bundinha de neném e vermelho como um russo num inverno de quarenta graus negativos.
O rapaz saiu da cabine, deu uma gorjeta para Thaís - ele se achou maluco por premiar a sua verduga- pagou o serviço na recepção e saiu.  Até a porta, manteve-se ereto. Quando percebeu que não era mais visto, curvou-se para frente e ganiu um P... Q...P...RIU que foi ouvido no Japão.
Três dias sentindo como um tecido pesava sobre a pele, dormindo sem camisa e gemendo toda a vez que se mexia na cama. As noites se tornaram infernais e os banhos o alívio almejado. A água fria era um bálsamo, sempre acompanhado de um p..q..p... fraquinho, num alento de alma que volta da morte.
Quando consegiu retornar à malhação chegou todo-todo, com a camiseta mais aberta e pronto para conquistar a B  I  A  N  C  A.
Surpresa!!! A moça estava aos beijos com Otávio, um professor da academia, para quem quisesse ver.
"Como? Quando?"
Tudo ocorreu durante o afastamento do Guilherme, enquanto a sua pele novata se habituava ao ritual diabólico. Perdera Bianca.
" Mas o cara é todo peludo. Parece um Gorila: Parrudo e peludão". Ah, teria que resolver isso! Afinal, "eu não sou idiota"- pensava para consigo mesmo.
"E aí, Bia? Com o Otávio?"
"É... E você? Faltou por quê? Doente?"- ela era assim, meio sem palavras. Como aquelas revistas que eu narrei no início.
" Sabe, eu não entendo... O cara é um macaco de tão peludo!"
" Ai, eu acho pelo o máximo! Dá uma virilidade....", mordendo o canto da boca, como se lembra de alguma cena.
Isso enfureceu o Guilherme. Afinal, ele quase morreu para agradá-la e merecia uma explicação coerente!
" VOCÊ ME DISSE QUE TINHA "NOJO" DE PELO E OLHOU NA MINHA DIREÇÃO!", gritando mesmo.
" Cara, tá maluco? Que ácido você tomou?! Isso vai matar você!" - Nossa! Ela conseguiu desenvolver um raciocínio com princípio, meio e fim. Seria um sinal do fim dos tempos?!
" DISSE!"
" Cara, se eu disse devia estar olhando para a Nadir. Ela levanta os pesos e rola uma, tipo assim, "floresta" embaixo da axila".
Nesse momento tudo fez sentido. Foi com o "embaixo da axila" que ele percebeu o erro da sua vida.
" Seria...NA axila?"
"Cara! Você já percebeu também?", agitando os longos cabelos com alongamentos de um lado para o outro.
Sem mais delongas, o "depilado" desistiu de malhar e foi na direção do Instituto de Depilação.
" A Thaís, por favor."
"Um momento", retirando-se a recepcionista e retornando com a moça.
" Como vai, senhor? Ficou bem?"
" Ótimo! Tem horário?"
" Nossa, mas não deu tempo de crescer. Tem uns três ou quatro dias, não é?!"
" Quero fazer as costas e os braços", como uma sentença e um tom de voz duro.
" Uau! Esse é o homem!", colocando o sorriso sádico em substituição ao meigo, só usado para receber os clientes.
E assim foi feito. Entre lágrimas e cera morna, Guilherme chorou sua dor- que Thaís acreditava ser da depilação e reviu a sua vida.
E vocês me perguntarão: Por que ele faria mais depilação?
Simples: Ele queria ser o mais diferente de Otávio, " O conquistador".
Beijos mil,
Adri.





sexta-feira, 19 de abril de 2013

O cacique Jurubeba

Ele chegou à cidade há meia-noite e vinte. Isso constatado pela tia Cotoca, que estava tomando um ar porque não conseguia dormir.
Não que ele tivesse vindo aparatado como índio, mas a tia em questão observou a chegada daquele homem alto e estranho à vizinhança.
Era uma cidade com porte médio e tinha lá a sua importância por ser a mais próxima à capital e foi exatamente nela que o cacique Jurubeba resolveu aportar.
Saiu do táxi com uma mochila às costas e uma mala grande, com rodinhas, arrastando-a pelo chão enluarado e sob o olhar da curiosa Cotoca.
No dia seguinte, as figuras mais eminentes daquele município já estavam a par do novo morador, que ocupara a casa dos Silva- que se mudaram para a capital para o filho ficar mais próximo da Universidade. Branca, grande, com duas entradas amplas e um jardim de dar inveja nos vizinhos, ali fixou-se a sede dos trabalhos do cacique.
Após uma semana parou à porta da casa um carro chiquérrimo, de onde saiu uma loura platinada, com óculos escuros, na casa dos cinquenta anos, sendo conduzida pelo motorista, impecavelmente trajado e, pasmem(!), ele também usava um perfume francês caríssimo.
A dama olhou furtivamente para os lados, torcendo internamente para não possuir conhecidos nas cercanias e atravessou o enorme portão de ferro, do séulo XIX.
O motorista permaneceu no lado de fora, encostado no automóvel e atento a qualquer movimento em direção à casa do cacique Jurubeba.
De dentro do imóvel só se ouviam poucos ruídos e um leve odor de lavanda foi sentido. No restante, era um silêncio ensurdecedor.
Uma hora e meia após a chegada, a loura platinada saiu, com um largo sorriso no rosto, enxugando as lágrimas que persistiam em sair dos olhos. Recobrou a majestade e colocou os óculos, sendo novamente conduzida ao carro e partiram, deixando o cacique à porta, com o peito nu, umas palhas amarradas aos braços e calças brancas, de um tecido levíssimo. Descalço, deu três batidinhas na sola dos pés, gritou umas palavras desconhecidas e entrou na casa, fechando o portão atrás de si.
Foi o suficiente. A coroa em questão foi até ele pedir o retorno do marido, que havia fugido com uma jovem de dezenove anos e CONSEGUIU o feito, tornando o cacique Jurubeba uma coqueluche social.
Todos os dias eram mulheres e homens, entrando e saindo do imóvel, com pedidos os mais variados: vencer as eleições municipais, estaduais e até federais; não serem cassados - após eleitos - por prevaricação, conseguir casar - preferencialmente, com um rico (ainda existe isso!), passar em concurso público e cura para as mais incríveis moléstias.
E o cacique Jurubeba lá, firme e forte, trabalhando para o "bem da população" sendo que, infelizmente, os valores cobrados não eram para o povo, assim, no geral.
E era uma felicidade! O cacique Jurubeba teve que contratar ajudantes, gerando empregos na região: arrumadeira, cozinheira, copeira, dois seguranças- afinal, personalidades da sociedade frequentavam a "modesta" sede do Jurubeba e um motorista. Claro! O cacique não teria "forças" para dirigir após tanto trabalho espiritual. Alguém enfrentaria o trânsito por ele. Uma pessoa menos Jurubeba de ser.
Para os que não eram atendidos, o cacique tinha respostas perfeitas para todos os questionamentos:
" Filho, aguarde o SEU momento no cosmos".
" Filha, este homem será seu quando VOCÊ se abrir para a natureza".
" A doença já está saindo de você. E se ainda não está curada, é porque LHE falta fé".
Bom, o cacique não cometia erros. Qualquer problema, era com VOCÊ!
Numa tarde rolou um bundalelê geral, como narrou a veterana Cotoca, que da janela acompanhou tudo. Tudinho!
A polícia cercou o quarteirão, com atiradores de elite posicionados em telhados e coberturas de edifícios, homens com os rostos cobertos com máscaras de esqui- pretas- daquele tipo que faria qualquer mulher suspirar, trazendo para fora, algemado com as mãos às costas, o cacique Jurubeba.
Havia duas socialites, no momento, que se preocuparam em cobrir os rostos e corpos nus, não necessariamente nesta ordem, que igualmente saíram enroladas em lençóis brancos, sob o espocar dos flashes e as palmas da garotada de doze/treze anos.
Ninguém entendeu nada, mas no mesmo dia estava na internet, para quem quisesse ler:
" Preso Ademílson dos Santos, também conhecido como: Doutor Vilella- médico; Professor PHD em astrofísica Ruy Beiral; Príncipe exilado Varamesto D'Ippaglia e... cacique Jurubeba", sendo a última identidade a que, de longe, foi a mais rentável.
O tal do meliante tinha uma folha de antecedentes criminais que, bem esticada, daria duas voltas no município onde estabeleceu a sua sede.
É... O sujeito está, por enquanto, no xilindró, detido por exercício irregular da profissão, falsidade ideológica, estelionato e roubo de galinhas(?). Enfim, o Ademílson era assim.
Mas ele se arrumou na cadeia. Ah, isso ele era, de fato: CRIATIVO.
Imeditatamente reativou o seu ar majestático quando, nos dias de visitação, passou a ler a sorte nas cartas, dando a certeza das mesmas dúvidas de sempre:
" Claro que seu marido vai voltar. Sai daqui em poucos meses!"
" Homem! Ela é fiel, mesmo você preso!"
" Tá grávida de um menino. Pode confiar!"
E assim ia, entre acertos e erros. Mas claro: se desse errado, o problema era SEU!
Beijos mil,
Adri.





sexta-feira, 12 de abril de 2013

O bilhete

Domingo de Carnaval.
Alberto escrevia o seu bilhete de despedida desta vida. Maiara, sua esposa há quatro anos e namorada há quinze o deixou. Fugiu com o personal trainer.
"Aquele cretino... Quantas vezes apertei aquela mão- que estava no corpo da Maiara- Ai... o corpo da Maiara... Aqueles seios...", pingando o papel com lágrimas sofridas de um homem que pagou religiosamente o personal para transar com a esposa. Claro que ele sequer desconfiava!
Mas, no final das contas, era isso mesmo, não é?!
Prosseguindo a nossa história, dentre as centenas de blocos que atravessariam as ruas da cidade, em especial a dele, naquele momento Alberto ouviu a marcação do surdo, o ziriguidum dos pandeiros e os foliões cantando uma marchinha antiga, sempre em moda- " Aláláô, ôuô, ôuô! Mas que Calor, ôuô, ôuô!"
Ele não se aguentou: correu para a janela e sacolejou as mãos, num ato desesperado de dor incompatível com folia.
Pior: o pessoal, lá da rua, acenava de volta, jogando confetes e serpentinas na direção do coitado. Acreditavam que ele os saudava, participando ativamente da festa.
Retornou à mesa, ao seu bilhete, mais nervoso e desatinado que nunca.
" Como podem sambar e serem felizes diante da minha dor, quando estou prestes a deixar o mundo. Gente sem coração", terminando a frase num lamúrio, como de criança febril que pede colo à mãe.
No papel só se lia: " FUI DEIXADO PELA MAIARA" e nada mais.
Empacou ali. Começou a rever as cenas da vida vivida a dois, lembrando-se do dia em que se conheceram, o primeiro beijo, o casamento e tome chororô que o papel, se pudesse, enviaria um S.O.S por medo de afogamento.
E o bloco ali, estacionado defronte ao edifício do Alberto, aguardando mais dois blocos que se encontrariam no local e fariam a escolha da " Musa dos Blocos" do bairro.
Xi! Aí o Beto endoidou de vez. Foi à área de serviço, encheu o maior balde que restou no imóvel com a água mais gelada que pôde. Com a decisão de um cowboy de filme B foi até a janela e mandou em cima dos foliões.
" Pronto! Quero ver se ficam por aqui. Hum!"
Quando o sujeito está com a sorte invertida, é fogo: a galera dos blocos foi ao delírio, gritando
"J O G A! J O G A   M A I S!", em ritmo de samba.
Claro, num calor que até o capeta tira férias e se retira para lugares mais amenos em temperatura, o Alberto virou um deus do Carnaval, que aliviou um pouco do calorão dos foliões.
E  foi vencido pelos pedidos persistentes, lançando uns dez baldes sobre o pessoal.
Um pouco mais calmos, voltaram aos sambas e marchinhas e deixaram o Beto, brevemente, em paz.
Suado, retornou ao bilhete e à única frase escrita. Empacou novamente. Pensava no parrudo, tatuado e bronzeado de praia, entrando em sua casa, dando tapinhas nas suas costas..." Filho de uma p....".
Um alguém do bloco resolveu perguntar o nome do cara, " muito maneiro" que jogou a água redentora, para o Zé, o porteiro que ostentava um colar de havaiana e peruca rosa, na porta do prédio- estava em horário de trabalho e não deixaria o posto jamais!- que, prontamente deu a ficha.
Era o que faltava. O povo, como uma filarmônica, gritava ao som do samba:
" Alô Alberto! Cadê você! Eu vim aqui só pra te ver!"
E quem consegue concentração numa situação dessas? Alberto queria escrever um bilhete sincero, suas últimas palavras ao mundo. E deveria ser, no mínimo, sério e ter mais que uma linha, ora!
E olhava para as poucas roupas que a adúltera deixara para trás. Uma saia xadrez, um sutiã vermelho e um par de meias colegiais.
A galera lá, no samba-suor-cerveja e..." Alô Alberto" sem parar.
Momento derradeiro, Alberto se cansou do mundo em que vivia. Pegou as roupas que foram de Maiara e, num rompante, foi para o banheiro, trancando-se lá.
Qinze minutos depois saiu, todo "trabalhado" com as roupas da fujona que, claro, estavam apertadamente ridículas. Mas era Carnaval e valia tudo.
Ah, sim! Ele escreveu o tal bilhete: no espelho do banheiro, com batom vermelho, lia-se
                                       " F U I     e    F...-SE  MAIARA!"
Beijos mil,
Adri.



quarta-feira, 10 de abril de 2013

O dia da mudança

Luiz estava armado, correndo pela savana quando se deparou com um leão enorme. Sem titubear, deu-lhe dois tiros e continuou a sua fuga. Apareceu um trem e, com um único golpe subiu a bordo quando, de repente, viu-se no alto de uma montanha e alçou voo, vendo lá embaixo a casa da avó Cotoca.
Blam!
"Ui...", acordou o menino no chão do seu quarto, sem qualquer aventura a não ser ir à aula.
" Droga, ainda faltavam quinze minutos para o despertador tocar...", dizia isso enquanto esfregava um dos olhos e tentava entender como fora parar no chão.
Dormir novamente tornara-se impossível, então o menino resolveu ir à varanda do seu quarto, olhar a vida que igualmente despertava ao seu redor.
Ao olhar para baixo, observou um caminhão de mudanças e uma família chegando ao edifício.
" Legal! Será que tem algum garoto da minha idade?"
Sim, porque no condomínio onde o Luiz vivia só existiam os extremos: ou crianças com idades inferiores aos seus maravilhosos dez anos ou adultos. Brincava mais com a garotada dos outros edifícios, mas seria mais confortável ter colegas ali mesmo, para jogar um futebol ou um game.
Quando olhou melhor, viu a imagem que mudaria a sua vida: linda, ruiva, olhos verdes- ou seriam azuis?!- uns vinte anos de idade.
" Nooooossa!" dizendo isso, com o coração aos pulos, ouviu a mãe o chamar para a escola. Nunca o Luiz tomou um banho tão caprichado, usou o melhor perfume, esticou bem a roupa no corpo e quando chegou à sala da família causou perplexidade: estava um lorde!
Engoliu qualquer coisa, estalou dois beijos no ar e se foi, ao encontro da mudança.
O elevador demorou uma eternidade e, quando as portas se abriram, seus olhos encontraram um decote e foram subindo até perceber as esmeraldas em forma de olhos de Larissa.
" Bom dia", cumprimentou a moça.
" Hum, hum..", abaixando os olhos como um ladrão confesso.
" Indo para a escola?"
" Hum, hum...- sou uma besta, porque não consigo falar nada que preste, do tipo "Bem Vinda ao prédio- Veio de onde?", mas o Luiz permanecia numa eloquência de mudo em festa Rave.
Chegaram à portaria naquele zero a zero e o menino foi na direção de sempre, com uma raiva de nunca e um sentimento no peito, recém apresentado.
As aulas foram de corpo presente, contando os minutos para o dia acabar e poder interrogar o Malaquias, o porteiro morador que, como todo porteiro que se preze, já saberia a ficha de todos os "forasteiros".
Mal bateu o sinal da saída e o Luiz correu na velocidade da luz, deixando os colegas da pelada na mão, sem entenderem nada.
" Pô, Luiz! Onde você vai? E o jogo? Esqueceu que é goleiro?"
"Outra hora, outro dia", saindo esbaforido pelos portões rumo à mulher da sua vida. Sim, porque durante os horários de aula, havia decidido que com ela se casaria, teriam três filhos e ele sustentaria a família sendo astronauta. Tudo bem planejado, já possuía um futuro a ofertar, sorrindo consigo mesmo.
No meio do caminho viu a carrocinha do picolé, parada obrigatória nos dias de calor. Parou. Nisso que ia pedindo o de limão, olhou para as mãos suadas, agarradas ao dinheiro e desistiu. Compraria uma rosa, vermelha, lá no quiosque da Dona Salma. " Era tanto por tanto e, se não desse, pegaria o dinheiro do lanche que tomava antes do inglês e inteirava. Mas a rosa seria dela!"
E assim foi.
Chegou ao prédio com a rosa dentro da embalagem plástica e a língua afiada para o interrogatório.
" Malaquias, meu amigão. E as novidades?"
" Eu, hein, Luizinho?! Que novidades?"
" Ué, o pessoal novo que eu vi chegar hoje, pela manhã".
" Ah! São os Nogueiras. Gente muito boa, muito decente. Vieram da rua de trás porque precisavam de uma vaga a mais na garagem. A filha mais velha, a Larissa, estuda medicina e comprou um carro..."
E antes que o coitado do Malaquias terminasse, o Luiz já estava a caminho do elevador para dar as boas vinadas aos novos vizinhos.
" Ei, Luizinho! Onde vai nessa pressa?!"
" Vou... Para casa, ué?!
" Ah... Pensei que fosse querer saber mais do pessoal do 801"
Ahá! Então foram para o 801, desocupado desde que os pais do Tavinho se separaram e venderam o imóvel...
" Tchau, Malaca!"
E num rodopio entrou no elevador e apertou o "8".
Coração aos pulos, mãos frias, "serei astronauta" como um mantra, quando o elevador parou. Portas abrindo e, como se a vida se tornasse lenta, encaminhou-se passo a passo para a casa da Larissa.
Tocou a campainha. Esperou- uns dois segundos, talvez-tocando em seguida aflitamente:
" Cruzes, vai tirar o pai da forca", alguém gritou lá de dentro. Agora só uma porta o afastava da amada.
Quando a porta abriu viu uma mulher atarracada, mal encarada- claro!- que perguntou secamente:
" Que foi, garoto?"
" Eu queria falar com a Larissa, por favor."
" A DOUTORA Larissa está no estágio e você deveria estar estudando para, um dia, chegar lá", dizendo isso, fechou a porta nos sonhos do menino.
Desceu um andar e chegou ao seu aprtamento, arrastando a mochila pelo chão.
" Ai, meu filho! Você lembrou do aniversário da mamãe", dizia a coitada da Marcela, achando que a rosa era para ela. " Viu só, Sérgio?! EU educo MEU filho melhor que a SUA mãe educou o dela".
E Sérgio, que havia ido almoçar em casa somente porque era o aniversário da esposa odiou, em silêncio, o gesto do filho, que manteve a pose e tascou um monte de beijos e abraços na mãe.
Os dias foram passando e Luiz não conseguia rever a sua amada, nem mesmo no elevador. Armava emboscadas, ficava na portaria ao ponto do Malaquias estranhar e nada.
Num sábado à noite ouviu um roncar de moto. Foi até a varanda e viu Larissa, pendurada no pescoço de um homem- que, segundo o Luizinho, era horrendo- de uns vinte e poucos anos, aos beijos. Montou na garupa e foram embora. O menino acocorou-se no chão e chorou baixinho. Alguém chegou antes dele...
Aquela noite foi um inferno na família porque o garoto teve febre, sentiu dores no estômago e foi levado ao hospital.
O problema, queridos leitores, é que o mal de amor não aparece em exames e foi diagnosticado como VIROSE. Sim, porque tudo o que não se sabe hoje, em medicina, é VIROSE.
Hidratação, repouso e asim foi. Mas dentro de si, Luiz sabia que era raiva do motoqueiro. Raiva da Larissa. Raiva do mundo todo, até daquela cachorrinha de lacinho, que era sua vizinha, a Jujuba.
Para piorar o quadro, as famílias do Luiz e da Larissa se tornaram amigas. Pronto, deu-se o enredo em ritmo de samba.
O moleque virava o capeta cada vez que se reuniam: derramava refrigerante no motoqueiro, colocou laxante na bebida do coitado e, num desespero absoluto, derrubou o gnomo- o gnomo servia, tão- somente como peso de papel, para as provas e boletins com notas ruins, antes do pai assinar- da varanda, quase acertando os namorados.
Até que, um ano e meio depois, veio a mais temida das notícias: Larissa vai casar!
Claro que a família do Luiz foi convidada e o garoto, de pronto, avisou que não iria.
" Por que, meu filho? A Larissa gosta tanto de você?", questionava a mãe, diante da recusa veemente do filho.
" Porque não! Detesto casamentos!"
Mas foi, com um terno alugado, um bico maior que o de Tucano e, só de raiva, tomou um banho de gato.
Mas Larissa, durante a festa e para espanto de todos os convidados, depois de dançar com o noivo atravessou a pista e foi até o Luiz, sentadinho num canto virado para a rua.
" Dança comigo, Luiz?"
E ele, vendo a mão estendida, Larissa linda naquele vestido de noiva, sentiu-se incapaz do não. Ele era todo sim, para qualquer coisa que ela o pedisse.
E dançaram uma música inteira, só os dois na pista, ele na altura do decote dela e os olhos arregalados dos convivas.
" Sabe, Luiz...  Eu estou casando porque eu amo o Rafa"
"Sei...", meio contrafeito com o rumo da conversa, durante a dança.
" Mas você tem tempo. Olha ali, no meu lado direito"
" Onde?"
"Ali, uma menina com vestido rosa..."
E Luiz encontrou. Uma mini Larissa, com uns dez anos também, encantada com o menino que dançava com a sua prima.
" Aquela é a Jaqueline, minha prima de outra cidade. Veio só para o meu casamento. Mas poderá vir outras vezes... Você tem tempo... Não acelere a vida!"
E Luiz sentiu novamente o coração acelerar, como no dia em que viu a mudança. E refletiu, num sorriso esperançoso:
" É! Eu tenho muito tempo!"
Beijos mil,
Adri.




quarta-feira, 3 de abril de 2013

O homem mais fiel do mundo

Seu Genivaldo era peixeiro. Não era dono de uma empresa, não. Montara há muitos anos uma banquinha, na calçada de sua casa de subúrbio, e lá passava os dias, vendendo os poucos peixes que adquiria no entreposto.
Sua mulher, a dona Lindinalva, era a mais feliz dentre as casadas do bairro, porque o marido estava sempre diante das suas vistas. Todas as vizinhas se roíam daquela vida cotidiana e rotineira, cheia de ranço e fedendo a peixe que o Genivaldo proporcionava à mulher, tudo porque ele foi considerado o homem mais fiel do bairro, talvez do mundo!
E isto era atestado por todas. Ele saía, diariamente, por volta das quatro da manhã em direção ao mercado municipal, que ficava longe, e assim garantia o seu sustento, oferecendo os melhores peixes aos clientes.
" Uma maravilha de marido!", gabava-se Lindinalva em todos os lugares onde surgia o comentário e deixava as outras com uma cor roxo hematoma, tendendo ao azul cianose.
Enfim, como costumo definir, "todas trabalhadas na inveja e no paetê". Coisa tão grande que nem reza forte, pé de coelho e arruda  juntos resolveriam.
Até que, sem mais nem menos, Genivaldo morreu- ou" esticou as canelas, vestiu o paletó de madeira, foi para a terra dos pés juntos, foi dessa para melhor, bateu com as dez, bateu a caçuleta". Enfim, morreu mesmo.
O bairro enluteceu, só faltou bandeira a meio mastro e ser decretado luto oficial pela passagem do marido "mais fiel do mundo".
Velório concorrido, a viúva num pretinho básico - como mandam as tradições- ao lado dos seis filhos do casal, tendo o mais velho doze anos. Uma lástima...
Coroas de flores dos familiares, amigos e até o mendigo fez questão de homenageá-lo com uma pequenininha e os seguintes dizeres: " Çaudade eterna. Vá na paz, Jenivaldo. Um abrasso do Moacir".
Muito tocante, apesar do assassinato da nobre língua portuguesa.
Se bem que, com os alunos de hoje, era capaz do mendigo Moacir conseguir notas boas no vestibular.
Prosseguindo a nossa história, durante o velório, ocorrido na casa do falecido, quem compareceu foi brindado com os quitutes da tia Cotoca que, tão logo soube do... infausto -adooooro  INFAUSTO- atracou-se com o fogão e tome bolo disso, daquilo, salgados- " e quem é diabético?", pensou ela- demostrando os dotes culinários já conhecidos das redondezas até que, num repente, entram quatro figuras desconhecidas de todos.
Uma mulher linda, igualmente num pretinho básico, trazia pelas mãos três crianças e, com a voz da dor que só quem a sentiu reconhece, sentenciou:
"Vão lá, crianças. Despeçam-se do papai. Ele agora é uma estrelinha...", caindo num choro convulsivo, o corpo a tombar na lateral da porta da casa, a mão segurando um lenço de linho com o monograma "G" a lhe aparar as lágrimas.
Diante do silêncio que se impôs, ouviu-se no corredor que levava à cozinha, a voz do Quinzinho:
" Caraca! A dona Lindinalva é chifruda!".
Justificável o espanto do moleque, porque a cena era insólita até para os adultos. O morto era " O homem mais fiel do mundo".
Lindinalva, recuperada do susto, mas com o coração a sair pela boca, interpelou a intrusa:
" Minha senhora, há algum equívoco aqui. Este é o meu marido, o Genivaldo. Nos temos seis filhos- apontando na direção da ninhada do casal- e a senhora deve ter errado de velório".
" Não! Este é o MEU amor, o MEU tudo, a MINHA razão de existir. É o Gegê!", e haja choro em cada pausa dramática.
" Gegê?!", surtou o Quinzinho, quase engasgando com a empadinha de camarão que a tia Cotoca acabara de lhe entregar.
Lindinalva, adquirindo um tom de pele semelhante ao da beterraba em período de boa safra, questionou novamente, na maior educação:
" Olha bem, sua vagabunda. O MEU marido, o GENIVALDO, não pode ser pai dessa criançada- imagine só?! Ela que teve seis...- e ser SEU, o que quer que seja. Ele era metódico, não saía da porta de casa, a não ser para comprar os peixes que vendia e, mesmo assim, para isso, levava uma hora para ir e outra para voltar. Vai me convencer, sua desclassificada- quanto amor ao próximo!- que neste período mínimo ele conheceu você e fez estas crianças aí?", apontando para o menorzinho, de uns três anos no máximo, que esticava as mãos para receber um pedaço de bolo de chocolate, dado pela tia Cotoca, que já se afeiçoara a ele.
" Tanto deu que estamos aqui. E não sou nenhuma desclassificada não!", pondo as mãos nos quadris com aquela disposição que só uma viúva quando enfrenta outra possui.
A discussão era acompanhada lance a lance, todos se comprimindo na sala ao ponto de empurrarem, discretamente, o caixão para a lateral.
O Moacir se reuniu com mais três, que viraram seis e por aí foram, na varanda da casa, para fazer um bolão de apostas. Sim! Qual mulher venceria a briga, porque a briga física era inevitável.
E foi mesmo. Começou com o básico: um empurrão no meio dos peitos, puxões de cabelo, unhadas até que degenerou e as duas rolaram no chão, com direito a calcinha aparecendo. O Quinzinho e a sua galerinha ficarem doidos com tanta "biologia" ao vivo.
" Cara, que maneiro é vir a velório!", exclamava o Juquinha.
" Maneiro vai ser quando aquele botãozinho arrebentar!", esfregava as mãos o Reginaldo, garoto de doze anos e muitas espinhas.
O mendigo Moacir se tornou o árbitro da luta, até porque a bolsa de apostas corria solta e era necessário saber quem seria a vitoriosa. Porém a situação saiu do controle e foi empadinha voando para todos os lados, criança remelenta se escondendo embaixo do caixão, tufos de cabelos sendo arrancados e até uma dentadura desconhecida foi parar dentro do copo do ceguinho, que foi posto em local seguro.
Resultado: Todo mundo em cana, no xilindró, ou seja, na Delegacia de Polícia, prestando depoimentos.
Menos o Genivaldo, que ficou lá, sozinho e feliz da vida- ou melhor, da morte. Foi o único a sair ileso!
Beijos mil,
Adri.