sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A primeira compra

Repentinamente nos vimos gargalhando, depois de um jantar rotineiro, quando eu me lembrei- e narrei- a primeira compra que fiz com o "meu" dinheiro.
Bom, para os que não sabem, tenho 41 anos e sou da época em que a Susi reinava absoluta e Barbies não eram vistas cá por estas bandas. Eu era quase uma colecionadora de Susies ( ou como a minha avó Vivi dizia "aquela boneca magricela". Isso porque ela não chegou a conhecer a rival americana) e, invariavelmente entre a montanha de pedidos de presentes- Natal, aniversário, dia das crianças- havia uma Susi, para desespero da minha avó. Enfim, eu era muito ingênua, tapadinha mesmo, mas tinha uma coleguinha mais velha- e uns quinhentos anos mais descolada- que inventou de pegar o Falcon do irmão para ser o namorado da Susi.
Só um adendo: vocês acreditam que ela levou a boneca para o salão de beleza para cortar o cabelo. Pior é que foi cortado e cobrado o corte!.
Voltando ao assunto, a Susi dela tinha um namorado e a minha não ia ficar encalhada nem a pau.
Em sendo filha única e, de um lado, neta única também, me socorri de todos para ganhar o Falcon na primeira oportunidade. Imaginem se, na minha família, alguém iria aceitar um "marido" para boneca e em 1979?!
Filha única porém nunca minada, recebi sonoros nãos e fui dormir com o barulho. A colega  em questão até emprestaria o boneco, mas eu achava reprovável dividirmos o "marido". Pensava comigo: "imagine só se minha mãe iria emprestar meu pai para a dona Maria, por exemplo? Nunquinha!!"
Mas criança é bicho renitente e continuei pedindo, entre uma bicicleta e patins, sempre incluía o Falcon. Sem chance.
Certa vez, passado um ano de pedidos repetidos, minha mãe se acostumou com a ideia até porque as meninas já haviam feito daquilo uma moda. Ficou mais fácil e pronto, finalmente a minha Susi ganharia um marido só seu. Seria um harém, porque eram muitas Susies para um único Falcon, mas isso não abalou a minha decisão.
Já era a versão mais moderna, "Olhos de Águia", na qual havia um dispositivo na nuca do boneco que fazia os olhos mexerem para os lados. Hoje isso é pra lá de asqueroso e insignificante, mas naquele 1980 era o que havia: um must!
Ganhei o de cabelo castanho- queria o louro- mas a minha mãe passou a mão no primeiro que apareceu e disse um "se dê por feliz" que encerraria qualquer exigência de terrorista.
Agora sim, explicada a dinâmica, voltaremos ao início da minha narrativa.
O meu Falcon só trazia a roupa do corpo e a minha Susi - nunca dei nomes às bonecas, elas permaneciam com os nomes de fábrica- era espetacularmente rica.
Não pode! Como eles sairiam para jantar na França (compete uma explicação: apesar de não ser oriunda de família rica, as minhas Susies almoçavam em New York e jantavam em Paris. Este é o mundo fabuloso da infância...) com o coitado sempre usando a mesma roupa?
Fui até a minha mãe, bem de mansinho e expliquei o constrangimento a que o rapaz estava exposto, sem poder trocar de roupa nem após o banho e que isso não era certo.
Não teve talvez: minha mãe já estava permitindo o boneco lá em casa mas não iria sustentar o marmanjo de roupas, sapatos e etc. Já bastavam as Susies. Se eu quisesse, que juntasse dinheiro para comprar.
Como sempre gostei de juntar dinheiro em cofrinho- é, podem rir, sou da época dos cofrinhos também- dei um bela sacudida no meu, que soou uma melodia triste, pálida e sem ritmo. Tinha que angariar fundos.
Sem delongas, qualquer troquinho que avô, avó, mãe ou pai me dessem estava valendo. Antes eu só aceitava as moedas grandes mas agora, nesta necessidade, nem tchum. Valia tudo pela roupa do Falcon.
Quando o cofrinho já estava mais pesado fui até a lojinha do bairro que era tipo um bazar e vendia de tudo um pouco, inclusive brinquedos e...roupas de Falcon!
" Quanto custa aquela ali, dona fulana?"
" Aquela da selva?"
"É sim."
"X dinheiros".
Para quem não vive no Brasil, vou explicar. Este país já teve tantas moedas que até a gente fica comprometido nas memórias. Não sei nem a moeda que vigia naquele ano de 1980, o que dirá o preço.
Voltei acabrunhada. Sabia que meu cofrinho não tinha tanto dinheiro guardado.
Continuei juntando por mais uns meses- o que era um inferno, porque a inflação corria à solta, inclusive na roupinha do boneco- e virava e mexia eu ia na lojinha, saber o novo preço cobrado.
"Assim eu nunca vou chegar. Toda hora mudam o preço para mais" eu reclamava em casa, ao que meu pai esclareceu: é a inflação.
Odiei esta tal de inflação e continuei a batalha pela igualdade de tratamento entre o casal Susi/ Falcon.
Um certo dia abri os cofrinhos, que já deveriam ser uns seis e joguei as moedinhas sobre a mesa, contando uma a uma. Meus pais viram a cena e nem imaginavam que eu continuava com a ideia daquela compra.
" O que vais comprar com tantas moedas?", perguntou meu pai- que não gostava da possibilidade de me ver brincando de marido e mulher.
" A roupa do meu Falcon, pai. Ele é pobre e minha Susi é rica. Vou ajeitar as coisas."
Papai fez um silêncio de aprovação. Um misto de orgulho e preocupação- afinal, Falcon era brinquedo de menino.
Coloquei todas as moedas dentro de uma sacola plástica- meu pai tentou trocar por notas, mas eu rejeitei. Queria levar as moedas que juntei- e fui toda lampeira pela rua, como quem carrega um pote de ouro entre as mãos.
Ao chegar na lojinha vi que o preço ainda era o da semana anterior- devem ter esquecido de remarcar- e, com o coração cheio de satisfação, aos oito anos de idade, aproximadamente, disse em tom solene: " Quero aquela ali, da selva. Não precisa embrulhar para presente porque é para o meu Falcon".
Coloquei o saco cheio de moedas de valores diferentes por sobre o balcão antigo e o pobre do dono da loja, um senhor, ficou ali contando um mais cinco durante uns minutos. Tudo certo.
Voltei para casa com a sensação de ter salvo a humanidade, ganho uma guerra e feito a igualdade entre as classes sociais.
A partir deste dia, o meu Falcon já tinha outra roupa para sair e eu ainda combinava os trajes, para ter mais possibilidades de jantares à luz de velas ou na beira do mar, em algum lugar exótico.
PS: A roupa da foto é idêntica a da minha compra.
Beijos mil,
Adri.

2 comentários:

  1. Se você quisesse dar um "upgrade" no Falcon, era comprar o jipe, o que lhe custaria uns dez cofrinhos cheios, para levar a Susi ao restaurante francês...
    Mas bem sei que a escritora da história não é impressionável com jipes, carros e congêneres.
    Beijos.

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    1. Maridão!
      Que felicidade em saber o que pensa sobre meus textos. É bem verdade que você é quase "obrigado" a lê-los quando são feitos, mesmo que nas madrugadas, mas um comentário inusitado é sempre um presente.
      Provavelmente a minha Susi preferiria um passeio num jatinho, mas abriria mão se fosse para passear de Jipe com o seu Falcon!
      Beijos e muito obrigada pelo incentivo.
      Sua,
      Adri.

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