quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Carolina da praia

Carolina era uma jovem com dezoito anos de praia, nos idos de 1960. Seus olhos azuis confundiam-se com o mar de uma das mais celebradas praias do país e era visceralmente apaixonada por Edgard.
Neste ponto, em que meus personagens estão apresentados, faço um lembrete: leiam as próximas linhas como uma viagem no tempo, onde o amor era dançado ao som do recém surgido Rock and Roll, com Elvis Presley tocando a sua guitarra num rebolado censurado pelos pais conservadores.
Carolina- e nunca, Carol, como hoje- amava as novidades e a efervescência cultural de sua época.
Fez greve de fome para poder usar biquini e convencer o pai, General linha dura, a permitir, nas palavras dele, "aquela devassidão". Conseguiu.
E Edgard era o ponto alto do seu frenesi. Andava com sua lambreta e jaqueta de couro, topete ao vento sem jamais sair do lugar- usava gomalina e ficava duas horas diante do espelho para que o cabelo tomasse a proporção desejada, e estudava num colégio de segunda.
Carolina não. Ela era aluna de um tradicional colégio para moças- adoro esta terminologia!- em que se aprendia o francês e outras coisas "úteis", como receber embaixadores para um jantar- e falava alemão fluente, sendo neta de alemães.
Ou seja, a famosa teoria de que "os opostos se atraem".
E Carolina passava elegante pelas ruas do bairro e diminuía o passo para que Edgard a visse. Esperava que ele a propusesse namoro- antes das risadas, lembrem-se da época, hein?!- e fazia o possível para ser notada.
Até que, num sábado à tarde, Carolina e Edgard se encontraram num olhar inevitável. Pegaram juntos o cardápio de sundaes e milk-shakes e ambos o soltaram:
"Pode escolher, eu aguardo", complementando a frase com um sorriso malicioso.
Nem preciso salientar que a jovem derreteu-se toda como um sorvete ao sol de meio-dia e correspondeu com um sorriso encabulado, abaixando os olhos constrangida.
Não que ela desejasse fazer isso, não. Mas uma moça de família TINHA que se portar daquele jeito, para ser "respeitada".
A partir daquele sábado e em todos os finais de semana daquele verão, Carolina e Edgard foram vistos juntos, seja na praia, no clube, na matinê do cinema ou na sorveteria, point da época.
A menina resolveu andar na lambreta, usar óculos "gatinha" e, ao sentir frio, Edgard emprestava a sua jaqueta para Carolina, que a cheirava como cão perdigueiro, como se quisesse guardar só para si aqueles momentos.
Numa noite, ao final do verão, Edgard pulou o muro da casa de Carolina e deu umas batidinhas na janela do quarto da moça.
Meio sonolenta, atendeu e levou um susto, fechando a frente do pegnoir:
"Edgard! Você enlouqueceu?"
" Enlouqueci de amor, Carolina. Venha comigo."
" Agora?! Meu pai nos mata, me deserda, mata minha mãe e meu cachorro", não necessariamente nesta ordem.
"Você me ama ou não?"
"Amo! Mas você tem que vir aqui, falar com o meu pai, pedir para namorar..."
"Ah, Carolina, pensei que você fosse diferente dessas meninas provincianas...", retirando-se lentamente pelo jardim.
" Psiu! Volta aqui. Eu vou" e pulou a janela, com camisola, pegnoir e chinelinho de saltinho ao encontro de Edgard, que já ia mais adiante.
E, nas dunas da praia- antes de existirem os arranha-céus, a moça deu tudo de si para o homem que amava, tendo como única testemunha a lua cheia.
Ao retornar à casa, sentiu o desespero tomar conta de sua alma. Já não era mais virgem e o pai surtaria ao saber disso. Mas, pensando bem e como disse o Edgard, "quem precisaria saber".
Passados alguns dias, a campainha toca e a mãe da moça avisa à família que o rapaz estava lá, com uma certa estranheza pois, apesar de vizinhos, as famílias nunca foram amigas.
Carolina colocou umas gotas de perfume atrás das orelhas e foi para a sala de estar, simulando um ar de surpresa. Por dentro, pensava em pedido de noivado, anel de diamante no dedo e uma festa de arromba no casamento.
A empregada abriu a porta e o rapaz entrou:
" Boa tarde. Desculpem-me a visita sem aviso..."
"Não por isso.", respondeu o General.
"Mas eu precisava fazer um anúncio"- "É agora", pensou Carolina"
"Faça, meu jovem."
" Posso pedir para uma pessoa entrar?"
"Claro que sim, mas vamos logo ao que interessa", respondeu o General quase declarando guerra ao rapaz com jaqueta de couro, que "invadira" a sua casa.
"Maria Luíza, venha", entrando em cena uma moça simples, num vestido floral com dois lacinhos nos ombros, com os olhos apontados para o chão e um sorriso tímido estampado no rosto.
Carolina empalideceu ao ponto da mãe perceber e acusar o calor que ainda era intenso, naquele final de verão.
Prosseguiu Edgard- "É que nós vamos nos casar e gostaríamos de entregar o convite. Será muito simples, porque a Maria Luíza é minha prima e veio do interior, passar o verão aqui e decidimos não adiar mais. Será na capelinha do bairro. Conto com a presença de vocês.", dando um olhar de adeus para Carolina.
Neste ponto, o rosto da jovem já tinha assumido todas as cores do arco-íris. Olhava para Edgard sem nada compreender, mas manteve a fleuma, para não se comprometer ainda mais.
Na data marcada, toda a família compareceu à cerimônia e foram à festa. Tudo muito simples e de bom gosto, exceto Carolina, que resolveu por um vestido preto.
" Cruzes, filha. De preto, num casamento?!"
" Soube que está na moda, na Europa". Ninguém estranhou, já que Carolina era dada à essas coisas de "moda".
Os anos se passaram e Edgard nunca mais foi visto. Após o casamento, mudou-se para o interior com a esposa e, os amigos de outrora, comentavam que havia se tornado bancário.
Carolina fechou-se para o amor e nunca mais quis saber de nenhum romance. Tornou-se uma psicóloga bem sucedida e lançou livros de auto-ajuda.
Já nos dias atuais, Carolina e Edgard se encontraram nas areias da praia, agora cercada por prédios de luxo, onde as dunas só existem na memória de quem as viu:
" Carolina?!"
Edgard era um senhor da terceira idade, sentado à beira de um quiosque, bebendo água de côco.
" Como?!"
" É! Você é a Carolina! Meu Deus, quantos anos!"
" Ah... O senhor conheceu a minha prima. Morou aqui, há muitos anos, sim."
" Nossa! Mas vocês se parecem... E têm os mesmos olhos azuis"
" Genética. Mas a Carolina morreu.", sentenciou a própria Carolina ao Edgard.
" Morreu? Quando? Como?"
" Logo após o casamento de um tal de Edgard.", mantendo-se firme no personagem de prima.
" Mas Edgard sou eu!"
" Ah... Ela escreveu um bilhete, dizendo que, se for o senhor, era um crápula, mesquinho, enganador, enfim, um homem de última. Um rato!"
" Meu Deus? Foi suicídio?"
" Não. HOMICÍDIO!", dizendo isso diante de um homem petrificado, Carolina despediu-se e caminhou em direção ao por-do-sol.
Beijos,
Adri.





segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Alfredus Claudius

Nasceu à meia-noite.
Chegou à vida num hospital público, filho de pais muito, mas muito pobres. Aquele tipo de pobreza que é maior que a ausência de dinheiro: é a ausência de esperança.
Chorou como se sua alma se ressentisse do que a vida, provavelmente, lhe reservaria e foi confortado no peito da mãe, que o aqueceu e o silenciou.
O pai tinha uma única certeza: seu filho seria ALGUÉM!
Mas como poderia ser respeitado se era oriundo de uma tamanha miséria agindo como vírus, a destruir tudo o que via em sua frente.
" Sim. Não temos um sobrenome de estirpe mas posso dar ao meu filho o nome que lhe abrirá as portas do sucesso: Alfredus Claudius".
Certa vez ouvira um homem falar sobre os jurisconsultos romanos e observou que muitos dos nomes eram terminados em "us".
Como a mulher decidira por Alfredo Cláudio, em homenagem aos avós de ambos os lados, o pai do menino selou o seu destino transformando o nome em algo, como passou a narrar insistentemente:
"início da riqueza".
O pobre menino cresceu entre uma sopa rala e uma cama com estrado quebrado. Raquítico, pálido, quando iniciou o período da alfabetização foi estudar numa escola pública, perto de casa, com ensino deficitário e professores mal pagos.
A vida de estudante era um inferno. Não era bom em nenhuma disciplina- conseguia ser apenas sofrível e, mesmo assim, após horas de dedicação- e, dia sim o outro também, apanhava de um valentão, o Robertão, menino bem nutrido e pleno de si.
Alfredus Claudius jamais se queixou em casa, porque via o sofrimento dos pais diante de problemas maiores e considerava, os seus, tão pequenos que não mereciam considerações.
Quando a mãe perguntava o que eram os hematomas nas pernas, braços ou rosto, alegava que foram feitos no futebol e que a posição de goleiro era assim, meio ingrata. Como não entendia nada de futebol, olhava para o marido que assentia com a cabeça e assim findavam as indagações.
Os anos passaram lentamente- quando se sofre, eles sempre têm a velocidade de um cágado!- e Alfredus Claudius fazia contagem regressiva para acabar com os estudos básicos.
Enfim aconteceu a separação de Robertão e a vida se encarregou de soprar os rastros de ambos em posições opostas.
Conforme o pai previu, Alfredus Claudius conseguiu ser ALGUÉM- bom, para mim ele sempre foi ALGUÉM...
Num lance de sorte, o já não mais menino inventou um componente eletrônico muito simples e, ao mesmo tempo, sofisticado que foi amplamente aceito pelo mercado de informática.
Ficou rico! Rico não. Milionário, com todos os cifrões a que tinha direito.
Ajudou os pais, viajou o mundo a negócios e a lazer, comeu tudo o que nunca teve direito de sonhar, dormiu em travesseiros recheados com plumas de ganso em camas King Size, nos mais sofisticados hotéis do mundo.
Teve tudo o que dinheiro poderia comprar, até amor falso.
Certa vez, numa festa realizada por uma das empresas da sua holding, com todos os executivos e vips presentes viu entrar uma ruiva espetacular, à la Rita Hayworth  no célebre filme "Gilda", num vestido que parecia costurado sobre o corpo, de tão justo. Era exuberante e contida, sem um pingo de vulgaridade em cada meneio de seus fartos cabelos. Veio acompanhada de um poderoso homem do ramo hoteleiro, com o rosto repleto de rugas e um charuto ao canto da boca- apagado.
Todos os olhares se voltaram para a mulher e Alfredus Claudius foi ao encontro do casal para recepcioná-los. Na verdade queria obter informações sobre o relacionamento dos dois. Ficou realmente impressionado e a desejava, com todas as suas células.
" Prazer. Sou Alfredus Claudius, o seu anfitrião", tomando a mão da mulher num movimento de beijo cerimonioso.
A mulher empalideceu a tal ponto que o seu acompanhante perguntou se ela estaria passando mal.
" Não, obrigada pela atenção, querido. Foi apenas uma queda de pressão. Estou numa dieta rígida para caber neste vestido", dando um leve sorriso, sem que isso retirasse de si a inconstância.
Alfredus Claudius desconfiou que teria sido a sua própria presença a causadora do desconforto. Havia sido recíproco o impacto e a ruiva o desejara também.
"Dr. Mason, a sua acompanhante ainda não me foi apresentada".
"Claro, peço-lhe mil desculpas. É que Victória tem sempre ótima saúde e disposição e fiquei realmente aflito. Victória, este é o nosso maior colaborador, Dr. Alfredus Claudius".
"Sem o doutor, por favor. Fiz somente o curso técnico e nem cheguei perto de qualquer universidade", voltando os olhos na direção da ruiva, que insistia em desviar deles.
A noite transcorreu impecável, banquete, orquestra, decoração e os salões lotados de gente bela e próspera. E Alfredus Claudius numa caçada impiedosa à Victória.
" Preciso lhe falar", dizia sorrateiro a cada leve esbarrar.
" Não. Estou acompanhada."
" Marido?"
"Não".
"Depois?"
"Não", aumentando a tensão dentro da mulher a um ponto que pediu para se retirar, sendo acompanhada pelo homem que a trouxe.
"Lamentamos deixar tão bela festa de maneira tão abrupta mas, inexplicavelmente, meu "bijou" está indisposta", cumprimentando o anfitrião que, apressadamente tomou as mãos da mulher entre as dele e as beijou, inadvertidamente, nas palmas.
Pausa. Viu um sinal em forma de coração na palma da mão esquerda de Victória e as soltou lentamente.
Olharam-se fixamente e foram centésimos de segundo que pareceram horas.
Alfredus Claudius despediu-se protocolarmente.
O casal saiu sem maiores delongas e a ruiva deixou cair, no seu desespero em deixar o recinto, um dos seus brincos, em esmeraldas colombianas, tão verdes quanto os olhos de Victória.
Quando Alfredus percebeu correu atrás do casal e travou o braço da mulher quando ela estava entrando no carro. O motorista pensou em intervir mas o homem que a acompanhava assinalou com os olhos que não.
" Perdeu o seu brinco, madame", num tom de desafio.
" Não faça um escândalo, por favor."
" Realmente você não me conhece mesmo. Eu a aguardo amanhã, no meu escritório, às nove em ponto", dizendo isto, deu boa noite ao homem e ao seu motorista e retornou à festa com passos decididos.
No dia seguinte o encontro se deu no horário sentenciado por Alfredus Claudius.
" Sente-se, Victória. Não é esse o seu nome?"
" Estou bem em pé."
" É uma ordem."
E a ruiva sentou-se, cruzando lentamente as pernas ornadas por meias negras transparentes.
" Então, como isso se deu?"
" Você quer me humilhar? Já conseguiu. O que lhe falta mais? Um escândalo? Sou bem conceituada como acompanhante de executivos e você pretende destruir o que levei anos para conseguir".
" Imagino, Robertão. Devem ter sido anos mesmo. Cabelos, busto, quadris e até a voz! Deve ter sido caríssimo, se bem me lembro como você era."
"Tive muita ajuda de um senhor meu amigo. Ambos mudamos muito, se bem me lembro como você era".
"Sarcástico?! Este talento eu desconhecia."
"E como ficamos? É alguma extorsão? Você não precisa disso."
"Não. Eu a quero. Com exclusividade."
E hoje, aquelas mãos que tanto surraram o raquítico menino, acariciam os cabelos recém grisalhos do poderoso Alfredus Claudius.
Beijos mil,
Adri.