segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Alfredus Claudius

Nasceu à meia-noite.
Chegou à vida num hospital público, filho de pais muito, mas muito pobres. Aquele tipo de pobreza que é maior que a ausência de dinheiro: é a ausência de esperança.
Chorou como se sua alma se ressentisse do que a vida, provavelmente, lhe reservaria e foi confortado no peito da mãe, que o aqueceu e o silenciou.
O pai tinha uma única certeza: seu filho seria ALGUÉM!
Mas como poderia ser respeitado se era oriundo de uma tamanha miséria agindo como vírus, a destruir tudo o que via em sua frente.
" Sim. Não temos um sobrenome de estirpe mas posso dar ao meu filho o nome que lhe abrirá as portas do sucesso: Alfredus Claudius".
Certa vez ouvira um homem falar sobre os jurisconsultos romanos e observou que muitos dos nomes eram terminados em "us".
Como a mulher decidira por Alfredo Cláudio, em homenagem aos avós de ambos os lados, o pai do menino selou o seu destino transformando o nome em algo, como passou a narrar insistentemente:
"início da riqueza".
O pobre menino cresceu entre uma sopa rala e uma cama com estrado quebrado. Raquítico, pálido, quando iniciou o período da alfabetização foi estudar numa escola pública, perto de casa, com ensino deficitário e professores mal pagos.
A vida de estudante era um inferno. Não era bom em nenhuma disciplina- conseguia ser apenas sofrível e, mesmo assim, após horas de dedicação- e, dia sim o outro também, apanhava de um valentão, o Robertão, menino bem nutrido e pleno de si.
Alfredus Claudius jamais se queixou em casa, porque via o sofrimento dos pais diante de problemas maiores e considerava, os seus, tão pequenos que não mereciam considerações.
Quando a mãe perguntava o que eram os hematomas nas pernas, braços ou rosto, alegava que foram feitos no futebol e que a posição de goleiro era assim, meio ingrata. Como não entendia nada de futebol, olhava para o marido que assentia com a cabeça e assim findavam as indagações.
Os anos passaram lentamente- quando se sofre, eles sempre têm a velocidade de um cágado!- e Alfredus Claudius fazia contagem regressiva para acabar com os estudos básicos.
Enfim aconteceu a separação de Robertão e a vida se encarregou de soprar os rastros de ambos em posições opostas.
Conforme o pai previu, Alfredus Claudius conseguiu ser ALGUÉM- bom, para mim ele sempre foi ALGUÉM...
Num lance de sorte, o já não mais menino inventou um componente eletrônico muito simples e, ao mesmo tempo, sofisticado que foi amplamente aceito pelo mercado de informática.
Ficou rico! Rico não. Milionário, com todos os cifrões a que tinha direito.
Ajudou os pais, viajou o mundo a negócios e a lazer, comeu tudo o que nunca teve direito de sonhar, dormiu em travesseiros recheados com plumas de ganso em camas King Size, nos mais sofisticados hotéis do mundo.
Teve tudo o que dinheiro poderia comprar, até amor falso.
Certa vez, numa festa realizada por uma das empresas da sua holding, com todos os executivos e vips presentes viu entrar uma ruiva espetacular, à la Rita Hayworth  no célebre filme "Gilda", num vestido que parecia costurado sobre o corpo, de tão justo. Era exuberante e contida, sem um pingo de vulgaridade em cada meneio de seus fartos cabelos. Veio acompanhada de um poderoso homem do ramo hoteleiro, com o rosto repleto de rugas e um charuto ao canto da boca- apagado.
Todos os olhares se voltaram para a mulher e Alfredus Claudius foi ao encontro do casal para recepcioná-los. Na verdade queria obter informações sobre o relacionamento dos dois. Ficou realmente impressionado e a desejava, com todas as suas células.
" Prazer. Sou Alfredus Claudius, o seu anfitrião", tomando a mão da mulher num movimento de beijo cerimonioso.
A mulher empalideceu a tal ponto que o seu acompanhante perguntou se ela estaria passando mal.
" Não, obrigada pela atenção, querido. Foi apenas uma queda de pressão. Estou numa dieta rígida para caber neste vestido", dando um leve sorriso, sem que isso retirasse de si a inconstância.
Alfredus Claudius desconfiou que teria sido a sua própria presença a causadora do desconforto. Havia sido recíproco o impacto e a ruiva o desejara também.
"Dr. Mason, a sua acompanhante ainda não me foi apresentada".
"Claro, peço-lhe mil desculpas. É que Victória tem sempre ótima saúde e disposição e fiquei realmente aflito. Victória, este é o nosso maior colaborador, Dr. Alfredus Claudius".
"Sem o doutor, por favor. Fiz somente o curso técnico e nem cheguei perto de qualquer universidade", voltando os olhos na direção da ruiva, que insistia em desviar deles.
A noite transcorreu impecável, banquete, orquestra, decoração e os salões lotados de gente bela e próspera. E Alfredus Claudius numa caçada impiedosa à Victória.
" Preciso lhe falar", dizia sorrateiro a cada leve esbarrar.
" Não. Estou acompanhada."
" Marido?"
"Não".
"Depois?"
"Não", aumentando a tensão dentro da mulher a um ponto que pediu para se retirar, sendo acompanhada pelo homem que a trouxe.
"Lamentamos deixar tão bela festa de maneira tão abrupta mas, inexplicavelmente, meu "bijou" está indisposta", cumprimentando o anfitrião que, apressadamente tomou as mãos da mulher entre as dele e as beijou, inadvertidamente, nas palmas.
Pausa. Viu um sinal em forma de coração na palma da mão esquerda de Victória e as soltou lentamente.
Olharam-se fixamente e foram centésimos de segundo que pareceram horas.
Alfredus Claudius despediu-se protocolarmente.
O casal saiu sem maiores delongas e a ruiva deixou cair, no seu desespero em deixar o recinto, um dos seus brincos, em esmeraldas colombianas, tão verdes quanto os olhos de Victória.
Quando Alfredus percebeu correu atrás do casal e travou o braço da mulher quando ela estava entrando no carro. O motorista pensou em intervir mas o homem que a acompanhava assinalou com os olhos que não.
" Perdeu o seu brinco, madame", num tom de desafio.
" Não faça um escândalo, por favor."
" Realmente você não me conhece mesmo. Eu a aguardo amanhã, no meu escritório, às nove em ponto", dizendo isto, deu boa noite ao homem e ao seu motorista e retornou à festa com passos decididos.
No dia seguinte o encontro se deu no horário sentenciado por Alfredus Claudius.
" Sente-se, Victória. Não é esse o seu nome?"
" Estou bem em pé."
" É uma ordem."
E a ruiva sentou-se, cruzando lentamente as pernas ornadas por meias negras transparentes.
" Então, como isso se deu?"
" Você quer me humilhar? Já conseguiu. O que lhe falta mais? Um escândalo? Sou bem conceituada como acompanhante de executivos e você pretende destruir o que levei anos para conseguir".
" Imagino, Robertão. Devem ter sido anos mesmo. Cabelos, busto, quadris e até a voz! Deve ter sido caríssimo, se bem me lembro como você era."
"Tive muita ajuda de um senhor meu amigo. Ambos mudamos muito, se bem me lembro como você era".
"Sarcástico?! Este talento eu desconhecia."
"E como ficamos? É alguma extorsão? Você não precisa disso."
"Não. Eu a quero. Com exclusividade."
E hoje, aquelas mãos que tanto surraram o raquítico menino, acariciam os cabelos recém grisalhos do poderoso Alfredus Claudius.
Beijos mil,
Adri.


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