segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Onde está a felicidade?

Ele nasceu numa sexta-feira. Treze de um mês qualquer.
Digo "qualquer" porque ele fora marcado. Não pela má sorte, como alguns, inadvertidamente, podem intuir, mas pela vida em si que tem a capacidade e a perversão de mil bruxas vindas do além.
Filho de família rica, foi o caçula que quase, por um triz, levou a mãe ao túmulo e, se não bastassem os demais acontecimentos, já justificaria o horror que o pai dedicou ao menino. Dizem que não chorou. Sofreu várias palmadas sem dar um único lamento. Sua alma imortal já pressentia o que a vida lhe reservaria dali por diante.
Foi criado pelas babás, sempre apartado da mãe que jamais o alimentou. Aos cinco anos teve uma queda de tal  monta que os médicos, na época, desenganaram os pais que suspiraram. De alívio.
Mas a vida é persistente e o menino sobreviveu na banalidade da sua existência, pedindo passagem às sombras e licença ao ar para poder existir.
Sonhava em ser astronauta e todos riam dele. Mal conseguia falar- como sequela do acidente- e ouvia muito pouco. O seu universo era imenso, rodeado de ideias que jamais seriam reveladas. Fechou-se ao mundo e criou um somente para si, com amigos e uma mãe afetuosa imaginários, que todas as noites o colocava para dormir, cantando-lhe músicas de ninar enquanto que a sua verdadeira mãe recebia nos salões, apresentando os demais filhos e, quando questionada, dizia que o caçula encontrava-se indisposto.
Nem mesmo as babás o apreciavam ou se dedicavam a ele. Apenas a cozinheira, que trabalhava como uma escrava para atender os caprichos da senhora, no pouco tempo que lhe sobrava, dava-lhe o regaço dos seios para que o menino descansasse, sentava-lhe ao colo e contava histórias dos antepassados escravos e como eles sofriam. Ensinava ao menino que o sofrimento existe há muito tempo e que o mundo não é só festa e brilho. Mesmo dentre os belos e nobres há um lado obscuro e triste, abafado pelos sons das taças com champanhe e o farfalhar dos vestidos das damas.
Numa manhã de 13 de maio a casa acorda em alvoroço. A cozinheira foi encontrada morta, caída sobre as batatas que descascava para o almoço. O menino foi ao seu primeiro enterro e não verteu uma lágrima sequer. Todos o criticavam novamente. Afinal, ele sempre fora "estranho" e não chorar num enterro- ainda mais de uma mulher que o amou tanto- era bem típico do esquisito menino.
O que ninguém sabia era que, dentro daquele coração, ele percebeu que Joana- era esse o nome da cozinheira- estava livre! Iria para os braços de Deus- ela o falara sobre um Deus bom e alegre, que queria toda a gente feliz- e não precisaria mais dormir somente duas horas por noite e aturar as ofensas da sua mãe.
Olhou para o céu azul, sem uma pontinha de nuvem e sorriu. Sorriu para Joana, a sua única amiga de carne e osso, que agora seria realmente feliz e livre.
Por incrível que pareça a caprichosa senhora e "mãe" do menino se exasperou com a morte da cozinheira. Havia convidado pessoas importantes para um jantar daí a dois dias e, nas palavras da própria "isso lá era hora para morrer?, oras." Pessoa virtuosa e sensível, não?!
Enfim, o menino retornou à casa acompanhado da família e confinou-se no quarto, como de costume.
Pegou caneta e papel- escolheu o de linho, branco- e pôs-se a escrever uma carta:
" Querida Joana.
Sei que você, boazinha do jeito que é, já está com o Deus do qual me falou. Aquele homem bonzinho que ajudou muitas pessoas e ficou na cruz. A parte da cruz eu ainda não entendi, mas sei que ele é justo e você, com certeza, já está no colo dele. Assim como fazia comigo.
Fico triste porque perdi você, minha única amiga. Mas fico feliz porque você merecia uma vida melhor do que a desta casa e o Deus de que me falou vai lhe dar tudo, tudinho que merece. Espero que encontre os seus familiares e se encontrar alguém aí que goste de mim, mande um beijo meu.
Bem, vou me despedindo com um pedido, se puder me atender: quando tiver um tempo e quiser, me leve para o seu Deus. Gostaria de conhecê-lo como você sempre o conheceu. Será que Ele iria se incomodar porque não consigo falar direito e mal ouço? Acho que não, porque você me contou que Ele ajudou uma moça que ia ser apedrejada porque não gostavam dela, não foi?!
Beijos saudosos e até breve.
Ulisses."
Os anos se passaram e Joana não veio buscar o menino, agora já um homem. Havia se tornado alto, magro e fora de esquadro. E o problema da fala foi deixado inerte pelos pais, apesar das possibilidades imensas de tratamento.
Foi ficando na casa enquanto os irmãos foram estudar fora do país, cada qual desenvolvendo os seus potenciais e se tornando o orgulho da raça. Os pais envelheciam sem sabedoria e puseram Ulisses para cuidar dos jardins da mansão, porque assim ele "teria alguma serventia".
Ulisses não reclamava. Não sentia em si o direito de viver e, de alguma forma, estar longe de todos se tornou uma terapia, um alento. E as flores e plantas do jardim entendiam os seus pensamentos e não o recriminavam pelas suas deficiências.
E que mãos tinha o Ulisses! O jardim tornou-se motivo de comentários no bairro, posteriormente no estado e virou matéria de televisão e revista.
Claro que Ulisses não poderia aparecer: os créditos ficavam com a mãe caprichosa, que adorava os holofotes e dizia ter um pedaço "do seu coração" em cada flor plantada.
Ulisses ria consigo mesmo. Coração...
Mas ficava feliz porque sabia ser obra sua e, nesta vida, ao menos uma obra sua aparecia para todos e PERFEITA. Suas imperfeições não passaram para as plantas ou flores e fizera algo que merecia elogios. Olhou para o céu, tão azul quanto no dia do falecimento de Joana e deu uma piscadela, como parceiros e cúmplices de longa data se cumprimentam pelo sucesso.
Certa vez uma menina, de uns quatro anos de idade e com problemas neurológicos, fugiu ao controle dos pais e foi atraída ao jardim. Com suas pequenas mãozinhas afagou suavemente cada flor colorida.
Inclinou o corpinho para sentir o odor de cada uma e roçou, bem de levinho, as bochechas rosadas em cada uma delas.
Ulisses observava a tudo como quem vê o passado retornando. Viu-se na menina solitária e inadequada ao padrões sociais, a fragilidade e a beleza que existe naquela diferença sensível.
Pela primeira vez em sua existência, chorou. Porque entendia o que a vida reservava àquela criança e talvez ela não tivesse uma Joana e, no futuro, um jardim para cuidar.
Dirigiu-se à menina e, sem qualquer palavra, os dois se entenderam. Pegou a flor mais bela e perfumada e entregou à menininha, que sorriu e correu para fora do jardim. Neste instante os pais da criança chegaram assustados com a fuga da menina e, quando viram a figura de Ulisses, o susto transformou-se em horror, acreditando em que espécies de coisa ele pretenderia com ela. Obrigaram-na a jogar fora a flor e o pai avisou que se ele se aproximasse novamente da filha, o mataria.
Ulisses ainda tentou balbuciar algumas palavras, mas foi em vão. Vieram seus pais, pediram inúmeras desculpas e disseram que era apenas o jardineiro e que ele seria repreendido e só não o demitiriam porque era doente e não teria como viver.
Ulisses, pasmo com aquelas palavras, caiu sobre os joelhos e chorou pela segunda vez.
" O senhor vê? Ele já se arrependeu do que fez", dizia a mãe para o pai da menina.
Quando o casal se retirou a uma distância segura, Ulisses ouviu os pais falarem, mesmo tendo problemas de audição, e percebeu que estavam acreditando que algo de horrível acontecera naquele jardim. Sem forças e sem defesa, já que desde o nascimento fora condenado à culpa perpétua, o homem alquebrado se retirou, com passos lentos, o corpo curvado, os olhos rasos de lágrimas.
Os dias se passaram e o clima refletiu a dor do pobre homem. Jamais chovera tanto antes.
Ele ficou recluso no seu quarto, olhando o jardim à distância e se alimentando muito pouco, quase sem se levantar do leito.
Quando o sol voltou a raiar, o jardim criou cores indescritíveis: o verde ficou mais verde, toda a sorte de cores em flores nem plantadas e borboletas. Sim!, borboletas multicoloridas a visitar o belo lugar.
Ulisses redespertou como o seu jardim e tornou a trabalhar nele, como quem cuida de uma obra de arte.
A menina veio se esgueirando e ficou por ali, ajudando com umas sementes, olhando as borboletas e rindo de tudo ao seu redor. Era como se aquele mundo a compreendesse e nele ela fosse livre.
Ulisses deixava e se divertia com a felicidade daquela menina, tão inadequada quanto ele.
Mas, um certo dia, enquanto cuidava do jardim recebeu uma pancada na cabeça e caiu ao chão. Com os olhos turvos e a mente embotada, olhou para o rosto do seu agressor e percebeu ser o pai da menininha. Este bradava: "eu avisei para não se aproximar dela, seu devasso insano!", continuando a dar-lhe com o porrete na cabeça e Ulisses a se esgueirar para o canteiro de margaridas.
O sangue manchou as belas e frágeis pétalas brancas e ele ali ficou, estirado e quase sem vida.
A mãe correu até ele, em desespero pela repercussão que o caso teria. Encontrou o filho olhando para o céu, azul como no dia da morte de Joana. Ele balbuciava algo, que a mãe não compreendia.
A menininha decifrou o enigma, falando com igual dificuldade: "você demorou a responder, Joana, mas obrigada por ter vindo".
Beijos mil,
Adri.