quarta-feira, 3 de abril de 2013

O homem mais fiel do mundo

Seu Genivaldo era peixeiro. Não era dono de uma empresa, não. Montara há muitos anos uma banquinha, na calçada de sua casa de subúrbio, e lá passava os dias, vendendo os poucos peixes que adquiria no entreposto.
Sua mulher, a dona Lindinalva, era a mais feliz dentre as casadas do bairro, porque o marido estava sempre diante das suas vistas. Todas as vizinhas se roíam daquela vida cotidiana e rotineira, cheia de ranço e fedendo a peixe que o Genivaldo proporcionava à mulher, tudo porque ele foi considerado o homem mais fiel do bairro, talvez do mundo!
E isto era atestado por todas. Ele saía, diariamente, por volta das quatro da manhã em direção ao mercado municipal, que ficava longe, e assim garantia o seu sustento, oferecendo os melhores peixes aos clientes.
" Uma maravilha de marido!", gabava-se Lindinalva em todos os lugares onde surgia o comentário e deixava as outras com uma cor roxo hematoma, tendendo ao azul cianose.
Enfim, como costumo definir, "todas trabalhadas na inveja e no paetê". Coisa tão grande que nem reza forte, pé de coelho e arruda  juntos resolveriam.
Até que, sem mais nem menos, Genivaldo morreu- ou" esticou as canelas, vestiu o paletó de madeira, foi para a terra dos pés juntos, foi dessa para melhor, bateu com as dez, bateu a caçuleta". Enfim, morreu mesmo.
O bairro enluteceu, só faltou bandeira a meio mastro e ser decretado luto oficial pela passagem do marido "mais fiel do mundo".
Velório concorrido, a viúva num pretinho básico - como mandam as tradições- ao lado dos seis filhos do casal, tendo o mais velho doze anos. Uma lástima...
Coroas de flores dos familiares, amigos e até o mendigo fez questão de homenageá-lo com uma pequenininha e os seguintes dizeres: " Çaudade eterna. Vá na paz, Jenivaldo. Um abrasso do Moacir".
Muito tocante, apesar do assassinato da nobre língua portuguesa.
Se bem que, com os alunos de hoje, era capaz do mendigo Moacir conseguir notas boas no vestibular.
Prosseguindo a nossa história, durante o velório, ocorrido na casa do falecido, quem compareceu foi brindado com os quitutes da tia Cotoca que, tão logo soube do... infausto -adooooro  INFAUSTO- atracou-se com o fogão e tome bolo disso, daquilo, salgados- " e quem é diabético?", pensou ela- demostrando os dotes culinários já conhecidos das redondezas até que, num repente, entram quatro figuras desconhecidas de todos.
Uma mulher linda, igualmente num pretinho básico, trazia pelas mãos três crianças e, com a voz da dor que só quem a sentiu reconhece, sentenciou:
"Vão lá, crianças. Despeçam-se do papai. Ele agora é uma estrelinha...", caindo num choro convulsivo, o corpo a tombar na lateral da porta da casa, a mão segurando um lenço de linho com o monograma "G" a lhe aparar as lágrimas.
Diante do silêncio que se impôs, ouviu-se no corredor que levava à cozinha, a voz do Quinzinho:
" Caraca! A dona Lindinalva é chifruda!".
Justificável o espanto do moleque, porque a cena era insólita até para os adultos. O morto era " O homem mais fiel do mundo".
Lindinalva, recuperada do susto, mas com o coração a sair pela boca, interpelou a intrusa:
" Minha senhora, há algum equívoco aqui. Este é o meu marido, o Genivaldo. Nos temos seis filhos- apontando na direção da ninhada do casal- e a senhora deve ter errado de velório".
" Não! Este é o MEU amor, o MEU tudo, a MINHA razão de existir. É o Gegê!", e haja choro em cada pausa dramática.
" Gegê?!", surtou o Quinzinho, quase engasgando com a empadinha de camarão que a tia Cotoca acabara de lhe entregar.
Lindinalva, adquirindo um tom de pele semelhante ao da beterraba em período de boa safra, questionou novamente, na maior educação:
" Olha bem, sua vagabunda. O MEU marido, o GENIVALDO, não pode ser pai dessa criançada- imagine só?! Ela que teve seis...- e ser SEU, o que quer que seja. Ele era metódico, não saía da porta de casa, a não ser para comprar os peixes que vendia e, mesmo assim, para isso, levava uma hora para ir e outra para voltar. Vai me convencer, sua desclassificada- quanto amor ao próximo!- que neste período mínimo ele conheceu você e fez estas crianças aí?", apontando para o menorzinho, de uns três anos no máximo, que esticava as mãos para receber um pedaço de bolo de chocolate, dado pela tia Cotoca, que já se afeiçoara a ele.
" Tanto deu que estamos aqui. E não sou nenhuma desclassificada não!", pondo as mãos nos quadris com aquela disposição que só uma viúva quando enfrenta outra possui.
A discussão era acompanhada lance a lance, todos se comprimindo na sala ao ponto de empurrarem, discretamente, o caixão para a lateral.
O Moacir se reuniu com mais três, que viraram seis e por aí foram, na varanda da casa, para fazer um bolão de apostas. Sim! Qual mulher venceria a briga, porque a briga física era inevitável.
E foi mesmo. Começou com o básico: um empurrão no meio dos peitos, puxões de cabelo, unhadas até que degenerou e as duas rolaram no chão, com direito a calcinha aparecendo. O Quinzinho e a sua galerinha ficarem doidos com tanta "biologia" ao vivo.
" Cara, que maneiro é vir a velório!", exclamava o Juquinha.
" Maneiro vai ser quando aquele botãozinho arrebentar!", esfregava as mãos o Reginaldo, garoto de doze anos e muitas espinhas.
O mendigo Moacir se tornou o árbitro da luta, até porque a bolsa de apostas corria solta e era necessário saber quem seria a vitoriosa. Porém a situação saiu do controle e foi empadinha voando para todos os lados, criança remelenta se escondendo embaixo do caixão, tufos de cabelos sendo arrancados e até uma dentadura desconhecida foi parar dentro do copo do ceguinho, que foi posto em local seguro.
Resultado: Todo mundo em cana, no xilindró, ou seja, na Delegacia de Polícia, prestando depoimentos.
Menos o Genivaldo, que ficou lá, sozinho e feliz da vida- ou melhor, da morte. Foi o único a sair ileso!
Beijos mil,
Adri.



2 comentários:

  1. Esselente!!! (Ou melhor, excelente!!!!) Inspirei-me no Moacir, kkk. Deu tempo!! Adorei a estória. Estou dando boas risadas.
    Beijos orgulhosos do Marido Orgulhoso.

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  2. Oi, amor de minha vida!
    Orgulhosa sou eu de ter um profundo conhecedor do vernáculo divertindo-se com o Moacir. Por agora, ele serve de inspiração.
    Obrigada pela paciência nas madrugadas em que fico ausente de você, criando os meus textos.
    Beijos mil, da sua
    Adri.

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