sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O mistério da Jurema

Jurema era uma mulata escultural. Ou, como dizia uma colega de infância com poucos  neurônios- "estrutural".
Enfim, Jurema era a vida do morro e o morro só existia ao redor das curvas da Jurema.
Subia e descia as ladeiras deixando um rastro de perfume barato e o "clap-clap" típico dos tamancos, com saltos tão altos, que chegavam a envergonhar anão.
A sua passagem pelo boteco do Mané era um acontecimento diário: Fazia-se um silêncio de monastério, solene, somente quebrado pelo ruído de copos ecorregando de mãos hipnotizadas e tabefes de mulheres enciumadas.
E lá se ia Jurema, num modelito curtíssimo, causando reboliço entre as beatas de todos os credos- Se elas pudessem, exterminavam a coitada da Jurema com água benta e óleo ungido.
A vida seguia o ritmo ao som do samba e o morro foi felliz até que, num domingo nublado, desceu Jurema, sem o conhecido "clap-clap". Usava saia abaixo dos joelhos, blusa com gola-fechada até o pensamento- e sapatos tão baixos que seria possível contar as pedrinhas do chão e descobrir o sabor do chiclete que o Juquinha cuspiu, ao ver aquela cena.
Os homens se abraçavam, consolando-se como se alguém muito estimado tivesse acabado de falecer.
E morreu. Daquele dia em diante, surgiu a "Dona Jurema". Exigia o respeito!
Mulher severa nos modos e aspecto, que se convertera à Igreja do Apostolado dos Santos Mártires do Amor Supremo do Terceiro Dia.
Vocês já observaram como o nome da igrejas têm se alongado? Parece ficha policial: Nome, sobrenome e filiação!
Prosseguindo com a nossa história, Jurema se entregou de corpo e alma à nova vida e foi: "recepcionista das ovelhas novatas", subindo na hierarquia para "recepcionista das ovelhas perdidas" até chegar ao almejado posto de " Assessora de pregação do apostolado".
Mas o morro permanecia em suspense.
O que teria levado a Jurema  (para uns, deusa- para outras, vocês sabem...) a esta mudança radical.
O pior eram os domingos. Cada modelito pior que o anterior, ao ponto do Juquinha engasgar com o chiclete. Ficou todo roxo e foi aquela correria no morro: vira o moleque de cabeça para baixo, põe papel na testa - ué? isto não é para soluço?!- bate nas costas e, por último, ouve-se: "Dá cachaçaaaa!", sugerido pelo Nicanor, bêbado honorário e frequentador assíduo do boteco do Mané.
Finalmente o garoto desentalou e quando conseguiu dizer as primeiras palavras, foi a voz do morro:
" Credo"- fazendo o sinal da cruz, como quem espanta o mal- "Tá muito horrorosa demais de feia", assim mesmo, sem qualquer pontuação, saindo de uma única vez.
Certo domingo aconteceu algo de insólito. Durante a palestra da igreja a qual estava frequentando, Jurema soltou uma gargalhada que, de tão sinistra, chegou a ecoar na igreja concorrente.
Culto paralisado. Rostos imóveis.
Pior: Jurema suspendeu, com uma das mãos, a saia e tascava gargalhada no pessoal.
O pregador, num lampejo de marketing, pois a mulata de joelhos e, aos gritos, invocou Deus e todo o mais.
Pergunto eu à vocês: Por que gritam quando invocam a Deus? ELE não deve ser surdo...
Prosseguindo, falou frases sobre anti-maldições, passou uma gosma na coitada e, como não parava de gargalhar, mandou-lhe um tapão, digno de marido corno.
Pode não, gente! Ninguém deve bater em ninguém!
Em frente, a Jurema levou mais umas cinco bordoadas bem no meio da fuça e parou de gargalhar, porque o nariz quebrou.
Voltou ao morro: o rosto inchado, numa cor que apenas um carnavalesco poderia esclarecer, com os olhos semi-cerrados e arrastando uma das pernas.
E isso foi piorando nos domingos seguintes, ao ponto do Juquinha- aquele do qual falamos antes e que era o capeta em forma de menino- prometer a Deus: " Conserta a "gostosa" que eu jogo fora as revistas que escondo da minha mãe".  Isto dito entre lágrimas- pela Jurema, toda judiada e por todas as peladas que traziam a felicidade para o seu banheiro.
Fuzuê no morro!
Era homem (até os casados!) com arma na cintura, querendo pegar o pregador à bala ou dedada no olho- entendam como quiser...
E a mulherada feliz! Especialmente as beatas de todos os credos, tão " Cristãs" em ver a desgraça da Jurema- agora, Dona Jurema- e o seu final merecido. "Era o castigo vindo dos céus", murmuravam umas com as outras...
Num domingo de sol, ouve-se o "clap-clap característico.
Todos correram para a porta do boteco, até mesmo o Nicanor, que se apoiando nas mesas conseguiu se levantar e foi o primeiro a avistar: " Juuu..", a voz alterada de emoção e cachaça, " Juuu.." e antes que concluísse, a macharada em coro, no alívio que só os "ADMIRADORES DE JUREMA"- bloco carnavalesco que saía às terças de Momo- poderiam explicar, terminaram a frase pelo coitado: "reemaaaa...".
E lá veio ela, no modelito curtíssimo, cabelos ao vento e os famosos tamancos, que sempre anunciaram a sua chegada triunfal.
Imediatamente o Palhares correu até a musa de todos e, num tom poético, recitou uma trovinha, de improviso:
" Jurema, nossa Juju.
Finalmente mandaste aquela igreja,
Tomar no.." e antes que ele terminasse, foi interrompido pelo coro de beatas que, como ratazanhas prenhes, fizeram um "Xiiiii" histriônico, também sacudidas de suas tarefas pelo "clap-clap" da mulata.
E no boteco do Mané, a pergunta era uma: " O que aconteceu?"
Jurema, com a calma das deusas coroadas pelos homens e detestada pelas mulheres, solucionou o mistério:
" Gente, é simples. Eu sempre namorei muito. É verdade,
Eu sempre bebi cerveja. É verdade.
Eu visto roupas assim. E gosto!
Vou ao samba, ao funk e tudo o mais.
Mas, aí, eu achei que era hora de mudar de vida, sabe como é?! Casar com um homem legal, temente a Deus, ter uns moleques e sossegar.
Mas tive um probleminha: o Santo resolveu baixar, logo na igreja e vocês sabem que eu sempre frequentei o "Terreiro da Mãe Nininha".
Olha, se eu vi Deus, deixei de ver, porque meus olhos, depois de tanta bofetada, já não abriam mais!".
E terminou com uma gargalhada, continuando a descer a ladeira.
Lá embaixo, sob os olhares do morro, estava estacionado um carrão, daqueles de filme. De dentro saiu um homem, bem vestido, camisa aberta no peito, cordão de ouro com medalha. Beijou a mão de Jurema e a conduziu, suavemente, até o interior do veículo.
Antes de entrar, porém, Jurema deu uma olhada pra todo o morro e seguiu adiante, deixando só poeira e perfume atrás de si.
Furdunço novamente.
A realidade é que o morro não existe sem a Jurema.
O samba perdeu o compasso, o bloco não saiu mais e as ladeiras ficaram tristes, sem o "clap-clap" dos tamancos da mulata.
Beijos,
Adri.

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