segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A culpa

A noite ia alta. Josué chegou à casa com um cansaço na alma.
Desabotoou o colarinho. Afrouxou a gravata.
Diante de si, na sala de estar, havia um enorme espelho, no estilo veneziano, para expiar-lhe as culpas.
Olhou para a imagem refletida e se envergonhou do que havia feito. Abaixou a cabeça.
Aproveitou o espelho para se resguardar de eventuais manchas que o seu ato pudesse ter deixado. Procurou no colarinho, na gravata, nos punhos da camisa branca e, com um suspiro de alívio, não havia qualquer resquício.
O pior, queridos amigos, é que Josué sentia culpa mas não remorso. Seu problema residia na esposa, adormecida no andar superior, que sempre confiou nele. Contaria ou não?
Bom, isto ele deixaria para outro momento. Estava exausto e necessitava urgente de um banho que o lavasse das lembranças do malfeito.
E assim transcorreu o silêncio da noite, apenas quebrado pelo barulho do chuveiro. Josué, com tamanha prudência, preferiu o banheiro social ao da suíte, para evitar o despertar de Maristela. E de suspeitas...
Subiu as escadas com a parcimônia do criminoso que se tornara.
" Não, criminoso não! Afinal, sou um homem e tenho meus direitos", pensava enquanto avançava em direção ao quarto do casal.
Vestiu-se e, ao se deitar,  a cama rangeu. Maristela, meio sonolenta, apenas questionou: " Chegou agora, amor?"
"Não, querida. Já cheguei há bastante tempo. É que estava no computador, revendo um relatório que tenho que entregar amanhã"- precisou mentir. Fazer o quê?
" Coisa séria do escritório?"
"Não, mulher. Rotina. Só rotina".
E assim se deu, com Maristela se enroscando no lençol e Josué na sua culpa.
As horas se passavam e nada do sono chegar. Sentia-se um cretino. Havia jurado! Jurou para a Maristela que jamais voltaria a fazer isso....
E não resistiu... Era gostosa a danada! E sempre que a via sentia todas as suas células estremecerem!
A boca aguava de desejo. Era um inferno.
Hoje não teve jeito.
" Pô, é a natureza falando e não se pode ir contra ela!", dizia para si, baixinho e mesmo assim, Maristela acordou: " Ir contra quem, homem de Deus?! Você está se virando a noite interinha e balbuciando tanto que não consigo engrenar o sono. Amanhã também trabalho, sabia?!"
" Tá bom, tá bom. Vou descer e ler alguma coisa..."
" Vai logo, que desse jeito não tá dando!", num tom exasperado de mulher que trabalha fora e dentro e exige dormir- óbvio!
Josué desceu com passos duros, sentindo-se enxotado da sua própria cama, do seu "ninho de amor".
" Agora, veja só se pode"- ia reclamando- " A gente chega no lar, crente que vai ser acolhido e é escorraçado  para fora do quarto, como um cão sarnento. É por essas e por outras que vou fazer de novo!"
E fez. No dia seguinte e em todos os outros, por mais de três semanas, até que, numa noite de lua cheia, a Maristela estava acordada e uivando, se é que vocês me entendem.
Josué nem disse aqui para a situação. Saiu de fininho, disse que a barriga não ia bem e se trancou no banheiro. Ficou lá por umas duas horas.
Quando saiu, a esposa havia dormido e Josué sentiu-se salvo.
" Mas logo naquele dia! Logo quando eu exagerei é que ela resolve "uivar"?
No dia seguinte tratou de sair mais cedo que o habitual para não encarar o questionário da esposa e chegou bem tarde, já na madrugada, tendo o cuidado de avisá-la que estaria organizando uns casos do escritório.
Salvou-se!
Mas não por muito tempo...
Certa noite, quando a situação completava quatro semanas, Maristela viu uma mancha na camisa e esperou o Josué para tirar satisfações.
Queridos leitores, a " Cerejinha do Sundae" recomenda: Não minta! Se mentir, policie-se!
Ou seja, é uma vidinha no inferno, com direito a suor e todo o mais!
Mal o homem atravessou a porta, tomou uma saraivada de impropérios pela cara:
" Sabe o que você é, J O S U É? Um mentiroso de marca maior, um cínico, um falso, um, um, um...", caindo num choro convulsivo de mulher irresignada com a prova dos fatos.
Brandia a camisa no ar, como uma bandeira de guerra perdida, dizia que J A M A I S o perdoaria, que tentou ajudá-lo, que ele PROMETEU que nunca mais faria e haja lágrima,  nariz inchado, cercado do drama que a situação exige- e espera-se.
Josué, aturdido, pedia calma- " Marizinha, meu amor! Os vizinhos vão ouvir... Grita mais baixinho. Afinal, não é para tanto..."
" Os vizinhos que se DANEM- em alto e bom tom! Eu é que sei da minha dor...."
E o buá continuava, entrecortado por tentativas frustadas de abraços, por parte do Josué.
E ele postou-se aos joelhos, quase numa contrição ritualística, e começou a esclarecer:
" Maristela. Eu admito. Sou um MENTIROSO!- dito assim, como um grito que liberta a alma.
Lembra-se quando fomos àquela endocrinologista..."
" Sei..."
" Pois é... Ela me deu uma listinha, disse que eu estava bem..."
" EU SEI!"
" Então, disse que eu poderia fazer muitas coisas ainda, que estava jovem e aparentava menos que a minha idade..."
" E DAÍ, J-O-S-U-É?!"
" Que bastavam cinco quilinhos, que era fácil e que não precisaria de muito esforço. Ela salientou - salientou mesmo!- que eu poderia me fazer concessões..."
" E????"
" FIZ! Sou homem! Sou macho! Sou casado com uma mulher que não me DÁ O QUE QUERO!"
Aí foi a vez dela pedir que Josué abaixasse o tom da voz.
" Não dou, Josué?!"
" NÃO!" - seu corpo era puro poder. Desabafaria anos de desejo incontido.
" Se era isso que você queria, bastava me pedir...", enxugando a lágrima teimosa que percorria o canto da boca.
" Então? Vai dar?!"
" VOU!"
Desceram os dois, em direção à cozinha. Maristela, com uma braçada, derrubou o centro de mesa, as frutas, tudo. Abriu a geladeira e, na penumbra da luzinha que dela saía, Maristela DEU!
Havia preparado TODAS as mousses que o Josué gostava, em especial a de chocolate, sua preferida e motivo da mancha na camisa.
E como um deus grego, Josué banqueteou-se com todas as guloseimas que Maristela sempre proibiu, sempre negou.
Beijos mil,
Adri.

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