terça-feira, 23 de julho de 2013

Maria e Murilo

Era um verão daqueles bem amenos, onde o sol aquece mais que bronzeia.
Maria era uma doce menina de sete anos, talvez oito, com longas tranças cor de mel e olhos profundos. "A profundidade que o mar tem", dizia-lhe o avô, todas as vezes em que se sentava aos joelhos para ouvir suas histórias sobre viagens pelo oceano.
Adorava o vô, ouvi-lo, brincar com ele. Eram bons companheiros mas ele compreendia que crianças são mais felizes e completas ao lado de outras e, assim, depois de um tempo de narrativas, o vô a colocava para correr e criar suas próprias memórias.
Naquele verão a família foi à casa da praia com os primos, recém chegados de outro país e a farra da criançada era uma constante. Não havia bolos que a Júlia, mãe de Maria, fizessem que fossem suficientes.
Até que, numa tarde na praia, procurando conchinhas de cores diferentes, Maria se distanciou dos primos e viu-se só, com a marola do mar a lamber-lhe os dedinhos dos pés.
Olhou para os lados e não viu ninguém. Esboçou um choro, os olhos profundos tornaram-se úmidos e mais profundos.
Sentou-se na areia e antes que o choro se reunisse ao mar foi encontrada por Murilo, um menino alto para a idade com a cabeleira ao vento, ruiva como os raios da manhã ao desabrochar naqueles verões.
"Perdida?"
"Sim...", enxugando o nariz sardento que teimava em escorrer.
"Eu sou Murilo e sei tudo por aqui. Há muitos verões venho para cá e não existe um único cantinho que eu desconheça. Vou levá-la para casa." e terminou a frase como um herói de aventuras mil, com superpoderes e capa.
Estendeu a mão para a de Maria que o olhou com certa desconfiança. Afinal, a mãe sempre alertava para não falar com estranhos. Imagine só se a visse ir com um! Porém, qual alternativa existia além de acompanhar o menino que prometeu levá-la a salvo para a família?
E tendo apenas o mar e o sol a desmaiar no horizonte como testemunhas, Maria entregou a mãozinha suja de areia a Murilo e deixou-se levar, esquecendo de imediato as conchinhas que foram o motivo da sua distração.
Os dois foram andando pela beirinha da areia, naquele lugar exato em que ela é dura e macia e o mar não causa medo, apenas alegrias. Correram, brincaram de pegar, jogaram bolas de areia um no outro e conversaram tanto como se fossem dois amigos de longa existência.
A noite já estava avançada e a família de Maria em desespero. Júlia com o corpo largado sobre o sofá chorava compulsivamente enquanto o avô de Maria, seu Pedro, foi à sua procura por toda a região, batendo de casa em casa, procurando os pescadores para conseguir alguma informação sobre o paradeiro de Maria.
Lá pelas oito horas da noite chega a garota, com as bochechas vermelhas, um sorriso sem fim na boca, as tranças misturadas com o sal e a areia, trazida pelas mãos de Murilo.
A família entra em comoção. O mar não havia levado a pequena Maria e nada de mal acontecera.
Murilo ficou paradinho na porta e sem ser percebido. Olhou para a cena e decidiu sair quando foi interrompido pelo avô da menina que praticamente fez um interrogatório com o garoto, digno de filme de agente secreto. Maria era a única menina dentre todos os netos e seu Pedro era quase um devoto da neta.
Mesmo assustado, o menino respondeu corretamente e foi "liberado". Saiu meio aborrecido porque foi impedido de se despedir da menina que havia salvo com seus superpoderes. E não conseguiu ver os belos olhos de Maria mais uma vez antes de ir-se embora.
Foi-se, arrastando os chinelos de borracha pelas ruas de paralelepípedos já banhados pela lua cheia.
Murilo adorava as luas cheias e, segundo ele, grandes coisas aconteciam nestes períodos porque o mar- sempre o mar!- reagia à ela, ficando furioso, cheio e mais profundo... como os olhos de Maria.
Deu uma corrida para apressar a chegada a casa, porque o jantar já estaria servido e a sua fome era a de um super heroi.
A família o recebeu sem maiores problemas porque, para ela, férias de verão eram sinônimo de criança em estado selvagem, desde que tomasse banho e se alimentasse, estaria tudo dentro da ordem.
Murilo preferiu omitir os fatos do dia e se limitou a dizer ao pai que a tarde foi interessante e que fez uma amizade. Sem mais.
Aquela noite dormiu sobre o lençol com estampa de espaçonaves com os olhos grudados na lua que enchia a janela e o pensamento em Maria.
"Que coisa estranha gostar tanto de uma menina... Ela não sabe jogar futebol- já havia perguntado à própria- ficou perdida e quase chorou.... Ah, se não fosse por mim. Eu sou o máximo!", terminando o pensamento e iniciando o sono que lhe traria mil aventuras.
Maria ficou de castigo por uma semana, sem poder ir à praia. Murilo a procurou inutilmente, inclusive por outras praias - vai que ela estivesse perdida mais distante?!- e nada.
Findado o castigo, a família salientou que a queria por perto e Maria sentiu um aperto incômodo no estômago. De alguma forma aquilo a incomodava e na meninice dos seus sete, oito anos não conseguia definir. Murilo estava com ela e queria voltar a encontrá-lo, correr com ele na praia, ouvir as histórias que ele contava.
Os dias foram se sucedendo e as crianças não se encontravam. Quando ela saía da sorveteria, ele chegava. Quando ela estava na praia, ele jogava futebol e quando ele ia à praia, ela já havia retornado para tomar o banho e jantar.
Murilo tomou coragem e foi até a casa da menina. Tocou o sino de bronze ao lado da porta principal e foi atendido pelo avô de Maria que, gentilmente, desaconselhou que ele a procurasse e que por culpa do garoto Maria ficara de castigo. Ele era "encrenca".
Saiu amuado pensando: "eu... encrenca..." e preferiu não tornar a encontrar a menina, por mais que quisesse, para que ele não fosse "encrenca" na vida dela.
Maria percebeu o sumiço de Murilo e tentou encontrá-lo, perguntando furtivamente aqui e ali mas, em sendo menos esperta, nada conseguiu a não ser o olhar mal encarado da mãe, que a repreendeu por estar constantemente se afastando: "quer se perder novamente, Maria? Já não basta o que houve? E se um estranho pega você, hein?"
E desta forma, aquele verão acabou, a família retornou para a capital e fechou a casa da praia.
Murilo foi-se também, com a família, os super herois e as muitas histórias que contaria quando chegasse na escola. Mas foi com o coração apertado.
Os verões iniciaram e terminaram e, com eles, a infância se passou. A família de Maria vendeu a casa da praia após o falecimento do avô. Aquilo tudo era dele e só fazia sentido com ele, a casa lotada de crianças e amigos, a mesa farta e cheirinho de bolo dos finais de tarde.
Anos após, Maria retorna à cidade. Passa diante da casa que foi da família e pensa em pedir para entrar mas, logo ao início, desiste. Já não há o sino de bronze, as árvores que davam flores multicoloridas foram cortadas e sua alma foi tomada por uma aflição horrível. Correu sem olhar para trás, pois lá já não havia o seu passado, nem aqueles verões da meninice.
Agora tinha os cabelos curtos, o tom mais escurecido, os olhos encobertos por óculos de sol e usava chapéu para evitar os raios solares: "quando eu era criança o sol era desejado e nunca impedido...", pensava sempre.
Andou a esmo e a cidade pouco se modificara. Quando se deu conta estava na praia em que conheceu Murilo, procurando conchas de cores diferentes. O mar veio beijar-lhe os pés, como quem reverencia uma amiga há muito afastada de nós. E a mulher cedeu espaço à menina e pôs-se a correr, como se os sete ou oito anos de sua existência retornassem no vento que batia em seu rosto, com os respingos de água salgada e areia.
O chapéu ficou para trás, lançou fora os óculos de sol e abriu os braços como se fosse um avião. Como se fosse Murilo contando suas façanhas.
No sentido oposto caminhava um homem, com as calças jeans dobradas à altura dos joelhos, carregando a camisa branca na mão. Viu aquela mulher brincando pela praia, sozinha porém acompanhada de milhões de histórias.
Acelerou o passo. O coração descompassou.
Correu.
Deixou a camisa cair da mão e, num ímpeto único, abriu os braços em forma de asas de avião e voou na direção de Maria.
Estão juntos até hoje e Murilo continua acreditando na lua cheia e nos profundos olhos de Maria.
Beijos,
Adri.


Nenhum comentário:

Postar um comentário